Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A hora errada

Flagelo da falta de timing na pandemia é a grande obra de Bolsonaro

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Outro dia falei dos empréstimos excessivos, exibicionistas e jecas que parte da sociedade brasileira gosta de tomar da língua inglesa. Timing (pronuncia-se “táimin”), derivado de “time”, tempo, é um exemplo de empréstimo útil.

Assim como o inglês é incapaz de diferenciar de forma expressa o ser e o estar, o português não consegue dizer o que está dito em “timing” sem recorrer a um bom punhado de palavras.

Normal. Organismos vivos, as línguas têm seus traços característicos, personalidades, elementos intraduzíveis. “Serendipity” pra lá, cafuné pra cá, quem tenta extrapolar essas diferenças para traçar hierarquias entre elas sempre quebra a cara.

Isso não nos impede de reconhecer a funcionalidade de timing na expressão de certas ideias. O Brasil tem hoje, além do problema da pandemia e do problema de Bolsonaro, um problema de timing.

Um problemaço, na verdade. Acabar com o isolamento social quando disparam os números de infectados e de mortos é receita de massacre.

Esta circunstância se relaciona às duas primeiras, como se vê, mas antes de tudo convém investigar melhor o timing. Seu sentido mais antigo, do século 16, é o de registro de tempo, cronometragem —o que não vem ao caso.

A acepção que interessa aqui, predominante no uso contemporâneo, é definida assim pelo dicionário Webster’s College: “Escolha do melhor momento para fazer ou dizer alguma coisa a fim de obter o efeito desejado”.

Fala-se muito em timing no vocabulário das artes performáticas, sobretudo do teatro: “Aquela atriz tem timing de comédia”. Nesse sentido específico, ritmo é uma tradução passável. Em outros contextos que o timing ilumina, não.

Timing não é igual a tempo, embora eventualmente possa ser traduzido assim. É noção de tempo, precisão no tempo, encaixe temporal a um processo, coordenação.

O Houaiss, que traz o verbete em inglês mesmo (palmas para ele, o uso da palavra se impõe), se multiplica em vocábulos para expressar isso.

“Sensibilidade para o momento propício de realizar ou de perceber a ocorrência de algo, ou senso de oportunidade quanto à duração de um processo, uma ação etc.”

Ênfase em “momento propício”. É por isso que a palavra nos ajuda a entender o tamanho do buraco em que nos metemos, a começar pelo erro de timing que dá origem à série: o de termos no leme um homem como Bolsonaro durante a maior emergência humanitária e econômica da história do país.

Fatal, esse erro costuma ser posto de lado sob o argumento de que “ninguém podia prever o vírus”. Há verdade na afirmação, claro, mas falta responder quais seriam as condições ideais em que entregar o país a gente desse naipe fosse crime sem castigo.

Os outros erros de timing que nos flagelam são consequências daquele. A definição que arrisquei acima —“noção de tempo, precisão no tempo, encaixe temporal a um processo, coordenação”— é um compêndio de tudo o que faltou ao Brasil nesses meses de exposição ao vírus.

Entre o voluntarismo espasmódico dos governadores e o caos metódico do governo federal, o auxílio que chegou tarde e o que nunca chegou, o fechamento que não fecha e a reabertura que não devia reabrir, estamos oferecendo ao mundo um show de falta de timing poucas vezes visto.

A ausência de liderança estraçalhou o timing de um povo que gosta de se ver como bamba do ritmo. E dizem que o timing do impeachment ainda não chegou. Mais do que nunca, o timing é de ficar em casa.

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