Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Para ser lascivo basta estar vivo

Curiosidade à parte, parentesco oculto entre palavras tem muito a ensinar

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Um dos grandes prazeres da etimologia é desencavar relações ocultas de parentesco entre palavras que parecem pertencer —e algumas vezes pertencem mesmo— a mundos muito diferentes. Além da simples curiosidade, acontece de termos de vez em quando uns cliques preciosos sobre o sentido delas.

Por exemplo: o que pode ter havido de comum, na origem, entre a lascívia (sensualidade exagerada, luxúria, indecência) e o relaxamento (descanso, alívio)? Quem pensou em "relax for men" errou, ainda que esteja com bom faro: a expressão moderna surgiu muitos séculos após a Antiguidade ver nascer o parentesco entre as palavras.

Dando uma pista daquilo que os dois substantivos compartilham em termos genealógicos, vale dizer que o laxante é da mesma família. Piorou? Perversões pesadas à parte, há poucas coisas menos compatíveis com a farra libidinosa do que o efeito de purgantes.

Mão segurando uma maçã vermelha molhada
Jim Cramer por Pixabay

Vamos encontrar o elo perdido entre a lascívia, o relaxamento e o purgante no verbo latino "laxare", afrouxar, e em seu adjetivo correspondente "laxus" —isto é, amplo, largo, frouxo, aberto, solto.

Se está na cara que laxar (afrouxar, deixar correr livremente) e relaxar (afrouxar, distender, repousar) são descendentes de "laxare", "lascivus" derivou de "laxus" com alteração de grafia. Tinha um sentido original bem menos carregado de volúpia do que aquele que acabou por nos chegar.

Queria dizer a princípio "saltitante, brincalhão, jovial, alegre, galhofeiro". O Houaiss registra até hoje essa acepção em português, com a ressalva de que é pouco usada. O exemplo que oferece tem sua graça: "Cabritos lascivos espalhavam-se pelo terreno aos pinotes". Tirem as crianças do terreiro!

Essa primeira e inocente acepção de "lascivus" não demorou a dar origem a outra, vizinha mas menos benigna —"petulante, impertinente". É impressionante como certas associações permanecem válidas através do tempo e das línguas. O "lascivus" era então o que hoje chamaríamos de uma pessoa espaçosa, folgada —adjetivos que, vale notar, já integravam o rol de sentidos de "laxus".

Mas como foi que, de buliçoso e folgado, o lascivo se fez libidinoso? A expansão semântica decisiva rolou ainda no latim clássico —impulsionada, tudo indica, pela ideia de frouxidão de princípios morais, abertura excessiva às delícias da carne.

Em Horácio e Ovídio, entre outros poetas clássicos, há registros do emprego de "lascivus" com sentidos intensamente negativos, como devasso, dissoluto e até mesmo vil, desonesto.

As acepções ligadas à luxúria foram as que desembarcaram em nossa língua como preferenciais em fins do século 16, após escala no espanhol. Pudera: no meio do caminho histórico tinha entrado em cena uma certa moral cristã.

Por falar nisso, uma curiosidade adicional: a profusão de sinônimos de lascivo —de depravado a sacana, de fescenino a licencioso, de indecoroso a lúbrico, de despudorado a imoral, de bandalho a sem-vergonha etc.— atesta uma travessura das línguas.

Às vezes, quanto mais pesada é a condenação moral que recai sobre algo, maior o número de palavras a nomeá-lo. Cachaça é outro termo que ilustra a tendência.

Quem quiser pode ver nesse traço dos idiomas uma espécie de piscadela, transgressão velada, válvula de escape indispensável para o prazer de estar vivo —e lascivo, graças a Deus— diante de tudo o que conspira para sufocar nossa alegria.

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