Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

Quando a etimologia se faz poesia

Do astro que mora nos desastres à ave grande que chamamos de avião

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Tem um segredo dentro de toda secretária, um astro no centro dos desastres, um cristão em cada cretino, um croata estampado em cada gravata e o pouso de uma ave no coração das aposentadorias –a mesma ave que, evidente a ponto de ser invisível, mora no avião.

Sim, a etimologia, o "estudo do sentido verdadeiro", que se dedica a mapear a origem das palavras, compartilha uma longa e bonita fronteira com a melhor poesia. Como esta, é capaz de arrancar da linguagem umas iluminações malucas que ultrapassam a racionalidade prosaica, relâmpagos de beleza em suas províncias mais remotas.

Ao expor os novos vocábulos e significados que a metáfora e a metonímia, esses motores perpétuos da linguagem, vão tecendo e desdobrando ao longo da história, a etimologia pode até não explicar lá muito bem o mundo complicado de hoje –mas quem é que explica?

Como afirmou famosamente –e ironicamente– Jorge Luis Borges, saber que a palavra cálculo vem do latim "calculus" (pedrinha), uma vez que as primeiras contas eram feitas com a ajuda de seixos e calhaus, "não nos permite dominar os arcanos da álgebra". É verdade, mas o gênio argentino, que era apaixonado por etimologia, sabia bem que ela tem outras utilidades.

Por que deveríamos manter secreto o parentesco, via latim, das secretárias e dos secretários com os segredos que, administrando a vida profissional e às vezes até a pessoal de alguém, eles precisam saber guardar?

Não seria desastroso omitir da origem do desastre o "disastro", a "má estrela" que, vinda do italiano, se espalhou por outras línguas a partir do fim da Idade Média, a bordo da crença popular –ainda bem viva, aliás– na influência dos corpos celestes sobre o que se passa na Terra?

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Claro que seria cretinice tentar abafar o fato histórico de que a palavra cretino nasceu num dialeto dos Alpes suíços como "crétin", que queria dizer simplesmente cristão –não por preconceito religioso, mas por compaixão, para enfatizar a humanidade de quem sofria dos distúrbios de desenvolvimento por disfunção da tireoide que a medicina veio a chamar de cretinismo.

Pode ser que um espírito grave descarte como mero adereço de cultura inútil saber que mercenários croatas a serviço da França nos séculos 17 e 18, com suas tiras de tecido amarradas no pescoço, provocaram tão forte impressão nos parisienses que deram origem a uma nova e duradoura moda, transformando "hrvat" (croata) em "cravate" (gravata).

Mesmo assim, não pretendo me aposentar –ou mesmo fazer uma pausa– antes de alardear bem alardeado que essas palavras compartilham com o pouso dos pássaros e a pousada dos humanos o ancestral latino "pausa" (interrupção, cessação, descanso). E olha o passarinho: a pose que fazemos diante da câmera, imobilizados por um segundo, não fica atrás.

Por falar em passarinho, que lembra passarão (salve, Mário Quintana!), falta explicar que o avião é, na origem, uma ave grande, um "avion", palavra que o inventor francês Clément Ader cunhou em 1875 para patentear sua engenhoca voadora.

Mario Quintana e trecho de uma de suas poesias
Mario Quintana e trecho de uma de suas poesias - Reprodução

Aquele primeiro "avion" nunca levantou voo, e só 31 anos mais tarde, também na França, Santos Dumont tiraria do chão o 14-bis. Se isso depõe contra Ader como aviador, resta o fato de que sua palavra decolou para a glória, imune até à artilharia antiaérea pesadíssima que, nos primeiros anos do século 20, tentou traduzi-la em Portugal como "avejão".

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