Sérgio Rodrigues

Escritor e jornalista, autor de “A Vida Futura” e “Viva a Língua Brasileira”.

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Sérgio Rodrigues

A palavra 'polêmica' é polêmica

Linguagem analógica da imprensa capitula diante do populismo digital

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E lá vamos nós outra vez lidar com um candidato "polêmico", como se essa palavra passasse sequer perto de dar conta da realidade. Não passa, não dá, não serve. E, no entanto, é dela que nos servimos toda vez que nosso quadro de referências é desafiado.

Quando digo nós, me refiro aos jornalistas. Sou velho o bastante para dar importância a isso, formado num tempo em que não soava de todo descabido aquele epíteto grandiloquente do "quarto poder". Em que fazia algum sentido refletir criticamente sobre o papel e a linguagem da imprensa.

Esse tempo está passando, passou. Talvez já fosse só uma memória quando, às vésperas da vitória de Jair Salnorabo na eleição de 2018, anotei aqui que o adjetivo "polêmico" não servia mais.

"Empregado como curinga no discurso jornalístico (devo ter contribuído para isso, não vou tirar o corpo fora), virou um eufemismo covarde e perigoso", escrevi, vendo ali um dos sinais de que "nossa linguagem contribuiu para dar um verniz de normalidade àquilo que em sociedades civilizadas tem outro nome".

Citei como exemplo o fato de, ano após ano, termos chamado de polêmica uma declaração como esta: "Através do voto você não vai mudar nada neste país. Só vai mudar, infelizmente, quando um dia nós partirmos para uma guerra civil aqui dentro, e fazendo o trabalho que o regime militar não fez: matando uns 30 mil, começando por FHC".

Havia palavras melhores para qualificar o rompante fanfarrão do ferrabrás? Aos montes. Que tal criminoso, absurdo, escandaloso, ultrajante, perturbado, desequilibrado, celerado, abominável, perverso, truculento, maligno, desumano, sanguinário?

Pablo Marçal e Jair Bolsonaro, que entregou medalha ao influenciador
Pablo Marçal e Jair Bolsonaro - @pablomarcal1 no Instagram

Nesse ponto a pessoa sensata que me lê pode argumentar que, apesar de sua evidente adequação, recorrer a tais adjetivos seria atentar contra a imparcialidade, tomar partido em vez de apenas cumprir o sagrado dever de expor os fatos.

Sim, seria tomar partido. Contudo, sem entrar no mérito de que a imparcialidade é um mito, quem disse que não toma partido aquele que qualifica de "polêmica" uma declaração ou atitude atroz?

O que nos leva a outra pergunta: quando foi que nossa linguagem perdeu o fio, tornando-se incapaz de expressar a diferença abissal que há entre tratar o público como imbecil, mentindo na cara dura sobre um adversário político, e declarar que não gosta de pão de queijo?

E assim chegamos ao xis da questão –ou, como se dizia no tempo em que a imprensa não se prestava tão docilmente a ser criadouro de corvos, aí é que está o busílis!

A linguagem do jornalismo tradicional é uma ferramenta desenvolvida para dar conta de uma realidade que já não existe, em que os atores se pautavam por determinados acordos sobre o que é aceitável e o que não é.

O vocabulário da velha imprensa, sua sintaxe, a moldura com que enquadra o mundo –tudo isso é analógico. Aplicado à realidade digital, fica um tanto fora de foco.

Diante de populistas digitais ferozes como Pablo Marçal, uma segunda –e de certa forma aperfeiçoada– encarnação do modelo Jair Salnorabo, seria falso atribuir a uma suposta pobreza vocabular do jornalismo atual o recurso débil ao adjetivo "polêmico".

O que eu ainda não entendia direito ao escrever aquele bem-intencionado artigo de 2018 é que o problema se reflete nas palavras, mas não tem raiz nelas. O problema é anterior às palavras. O problema está nas coisas, e são elas que precisamos mudar se quisermos resolvê-lo.

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