Se as dúvidas em relação à economia e à geopolítica global já tornavam o cenário para o Brasil em 2024 mais incerto, o enfraquecimento do arcabouço fiscal, com o aumento das chances de mudança da meta de déficit primário, coloca em xeque a continuidade das boas notícias deste ano: crescimento da atividade acima do esperado, queda generalizada da inflação e ciclo de queda de juros.
O cenário para as principais economias globais inspira cautela com a Europa à beira da recessão e a China provendo estímulos para evitar um crescimento decepcionante. Mesmo para os EUA, cuja performance tem sido extremamente positiva, as perspectivas têm oscilado bastante. No último período de um ano e meio, o consenso dos analistas sobre os rumos da economia americana variou entre pouso suave, pouso forçado e nenhum pouso. Embora a visão predominante agora seja de pouso suave, as previsões estão longe de ser estáveis.
O risco mais imediato no país é o forte aumento das taxas de juros longas, explicado em parte pelo aumento da probabilidade de que a política monetária precise ficar bastante restritiva por um período prolongado, dada a resiliência do mercado de trabalho e da inflação mais relacionada à demanda.
Simultaneamente, temos um aumento do prêmio de risco demandado pelos investidores que carregam a dívida americana. O crescimento acelerado do déficit primário nos últimos anos se junta agora ao aumento das despesas com o pagamento de juros, trazendo uma perspectiva de insustentabilidade para a dívida.
Com a aproximação da campanha eleitoral nos EUA, não haverá clareza sobre como será conduzido o necessário ajuste fiscal. Pelo contrário, depois da Guerra na Ucrânia, da eclosão da guerra em Israel e do receio de que haja algum conflito em Taiwan, o consenso entre republicanos e democratas é que os gastos com defesa precisam subir nos próximos anos. O sentimento de risco geopolítico pior traz também uma preocupação maior com os retrocessos na globalização e seus impactos positivos para inflação e crescimento no mundo.
É nesse contexto turbulento que a sinalização de mudança da meta de primário para 2024 tende a ter efeitos bastante negativos. Em primeiro lugar, enfraquece o esforço da equipe econômica de buscar o ajuste fiscal via aumento de impostos. Dificilmente o Congresso estará disposto a arcar com o ônus de aprovar medidas que tragam oposição de setores organizados da sociedade quando o governo mostra pouca disposição em buscar a meta de primário.
Em segundo lugar, se no primeiro ano de arcabouço muda-se a meta para evitar um contingenciamento, qualquer comprometimento com as metas futuras passa a não ser mais crível. O próprio arcabouço é enfraquecido, já que, se não há empenho em se aproximar das metas, o mesmo deve valer para o cumprimento do limite de crescimento real das despesas de 2,5%, estabelecido com a nova regra fiscal. Com a volta dos pisos para educação e saúde e a nova regra do salário mínimo aprovada, o risco de mudanças nesse limite também ficou alto.
Após as declarações contra a medida de zerar o déficit primário, a curva de juros aumentou a precificação para a Selic no fim do ciclo de afrouxamento monetário. A política fiscal afeta as decisões do Copom pelos seus impactos na demanda agregada e pelo canal do risco, que por sua vez se transmite pela taxa de câmbio e pelas expectativas de inflação. O BC tem chamado muito a atenção para este último canal, já que mesmo com a manutenção da meta de inflação em 3% a ancoragem das expectativas foi incompleta.
Os modelos de projeção de inflação do BC levam em conta o fato de que os analistas já não acreditam no cumprimento da meta fiscal; mas o problema é que, quando fica explícito que o governo não apoia medidas de corte de gastos, a chance de piora nessas projeções cresce. O efeito colateral é a "desancoragem gêmea" –termo que o BC usa para descrever o fato de que a falta de ancoragem das expectativas sobre a política fiscal leva a uma desancoragem em relação às metas para a inflação–, que atrapalha a queda da inflação e dos juros.
Em economia aprendemos que os agentes reagem a sinalizações e que expectativas importam. Ficar sem regra fiscal quando o cenário internacional está incerto é bastante arriscado e pode acabar atrapalhando o nosso desempenho econômico no ano que vem.
Aproveito o espaço para parabenizar o Departamento de Economia da PUC-Rio pelos 60 anos de graduação, 45 anos de pós-graduação e pesquisa e 30 anos do programa de doutorado. Durante esses anos, o departamento contribuiu de forma intensa para a política econômica brasileira e é reconhecido internacionalmente por ter formado profissionais cuja pesquisa acadêmica esteve na fronteira da ciência econômica. Sou eternamente grata pela formação profissional e pessoal que os professores e colegas da PUC me proporcionaram.
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