Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Não quero transar

Todo mundo só quer discutir o direito à saia curta sem calcinha e ao shortinho enterrado na bunda com meia arrastão. Sim, também sou a favor de que essas vestimentas (ou a falta de) possam brilhar em um universo sem machistas escrotos, loucos criminosos e religiosos boçais.

Mas, gente, e a minha calça de moletom GG furada? Mulher mal vestida sofre um bullying que a periguete nem imagina. Se pra elas eles buzinam (e fazem aquele barulhinho chato de quem não sabe tomar sopa quente), pra gente eles aceleram e passam por cima.

Esse tipo de homem (vamos chamar de "esse tipo de homem", pra não generalizar, mas...) tem muita raiva de mulher que "não se arruma ou não se comporta dentro dos códigos do que ele acredita ser uma fêmea", porque pensa que, em algum lugar de sua psique de paparicado e dono do mundo, só existimos para bajulá-los.

Nós, as com preguiça de ostentar centímetros de um sutiã rendado numa manhã fria de São Paulo, temerosas de pneumonia e coisas do tipo, somos provas irrefutáveis e tridimensionais de um fenômeno muito moderno e real, chamado: passamos muitas horas do dia cagando para o fato de que eles têm um pau. É como se nosso tênis ou cabelo ensebado preso em um elastiquinho bege de farmácia da Pompeia dissesse: "Hoje eu tô super ocupada e... Poxa, você é homem, tô vendo, apenas realmente não me importo com isso agora".

Então, o indivíduo tá lá. E, não bastasse estar lá, ele trabalhou hoje. E, não bastasse tamanho feito, ele malhou também. E, não bastassem tantas conquistas desse herói, ele quitou o carro dele nessa data.

E você, essa gororoba química progressista, ousa passar por ele, vestida com roupa de "ficar em casa com a avó"? Que tipo de mulher é você? Uma feia, uma mal comida, uma sapata? Uma arrogante, uma solitária, uma maluca? Não, você apenas não precisa do aval estético fantasioso de um macho luxurioso pra enobrecer a sua tarde. E isso deve doer.

Sempre ouvi que eu deveria ser menos engraçada e mais feminina. Que eu deveria falar menos palavrões e sorrir mais. Que eu deveria fazer menos caretas e concordar mais. E, sobretudo, que eu deveria parar com botininhas, calças largas e blusas de gola alta. Como se fosse uma obrigação da mulher "parecer uma mulher". Como se não bastasse ser mulher pra se parecer com uma. Ser mulher é sempre "para alguém e para alguma coisa" e nunca apenas porque se nasce.

Que cansaço. Algo como "já que Deus lhe deu uma vagina, use salto alto; já que Deus lhe deu uma voz de fêmea, 'enfrescalhe-a' e ronrone". Porque "é disso que ELES gostam". Bom, eu gosto de hidromassagem, barulho de chuva domingo de manhã e risoto de frutos do mar. Posso estar mais preocupada COMIGO do que com ELES?

Tenho vontade de fazer um Instagram "look do dia de quem trabalha em casa". Agora mesmo escrevo essa coluna tão sexy quanto uma geladeira quebrada de boteco da Santo Amaro. Trajo uma blusa de lã amarela toda puída, dois números maiores que eu, e uma calça de ginástica de elástico frouxo (pra me apertar tem que ser bom de papo –e roupa não fala).

Toda vez que saio de casa sem tempo ou saco de dar aquela conferida marota no espelho, sinto que tenho escrito em minha testa, em neon piscante fúcsia, uma terrível e agressiva mensagem de ódio: não quero transar. Tive a petulância, o desplante, a arrogância de sair de casa para fazer uma reunião (ou para comprar pão, que seja) e não para lhe agradar. Os homens sofrem muito.

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