Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Homem objeto

Crédito: Divulgação Cena de "The Square", do sueco Ruben Östlund; longa recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes
Cena de "The Square", do sueco Ruben Östlund; longa recebeu a Palma de Ouro no Festival de Cannes

Assisti esta semana ao excelente filme "The Square" e um diálogo em particular me fez ter vontade de voltar ao temido (tão polêmico quanto delicado) tema dos jogos de poder na hora do sexo. Uma jovem jornalista americana, aparentemente bem resolvida com os anseios de sua libido, certamente envolvida nos preceitos feministas e interpretada pela sempre brilhante Elisabeth Moss, acusa o protagonista, um celebrado curador de museu em Estocolmo, afirmando que ele faz uso de seu prestígio e fama para conquistar (transar com muitas) mulheres. Ele então responde: "e não foi justamente o meu poder que te seduziu?".

Ela, que sensualiza livremente com o que lhe interessa, que parece segura de seu fetiche, que parece entender que "nossa, que homem foda, preciso dar pra ele agora" é também objetificar o outro (e 1 - qual o problema? 2 - por que se ver como uma tadinha objetificada ao se entregar para o próprio desejo?) dias depois surge angustiada, tentando entender os motivos de uma não-relação interrompida. Se sentindo, de certa forma, abusada. Usada por aquele homem que sabia ter um enorme e irresistível falo quando na presença de uma "fã". Só lembrando que temos todo o direito de esperar ser amado quando oferecemos nosso corpo para palmadinhas deleitosas e previamente acordadas, só não podemos exigir esse amor acusando o outro de sadismo unilateral.

O filme não é centrado nessa ou em qualquer outra trama (apesar de elas serem muitas e geniais e parecerem não estar interligadas mas estarem super interligadas –que filme!), e sim na rotina de um homem autocentrado. O roteiro ora quer satirizar e ridicularizar esse tipo que "prefere guardar a camisinha cheia de esperma por temer que alguma mulher use de forma indevida seu jorro de ouro", ora o coloca como um cara qualquer, meio ingênuo, meio fruto do meio superficial em que vive, que poderia chamar de arte qualquer maluquice que está num museu mas não sabe que nome dar à pobreza (tão pequena se pensarmos em Brasil) que insiste em delimitar seu reinado de belezas. E acabamos gostando mais dele do que de todos que o circundam e perturbam!

Eis o segredo de qualquer boa história, seja cinema, literatura ou textão de rede social: a tridimensionalidade. A capacidade de discutir de forma mais sincera e humana e menos "cartilha de sociologia" o que sentimos (e não o que gostaríamos de pensar pra pertencemos a um grupo que parece pensar da forma que achamos que é certa ou pega bem). Lena Dunham também fez isso brilhantemente durante a última temporada de "Girls".

Sim, o poder é afrodisíaco pra cacete. Colecionei paixões por muitos chefes, principalmente por aqueles com histórias de "começou motoboy, acabou presidente". Era só saber que o rapaz vinha "do nada" e "tinha chegado lá" para salivar em luxúria. Não me refiro a cifras homéricas, mas a ser "foda" e ter algo a ensinar. Ah, e importante dizer: se eram mulheres nessa posição, também me atraíam.

O interessante é que nunca olhei para essas pessoas pensando em como eu seria feliz em estar ao lado delas, talvez enfeitando suas salas com decoração étnica. Eu queria era me tornar uma delas. Eu estava, na verdade, era com tesão em mim e no que eu poderia ser. Ao objetificar o homem poderoso, eu me objetificava como alguém que engole esse homem para um dia se tornar ele. Pode ser sim um tipo de abuso, mas o sexo sem as sujeiras do nosso inconsciente é também um tipo de violência.

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