Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Coisinhas

Sempre me pego fazendo dancinhas nos corredores dessas lojas maravilhosas

Loja de Multicoisas
Loja de Multicoisas - Reprodução

Às vezes, sou acometida por um incontrolável desejo de coisinhas. Na verdade, confesso aqui, não são raros esses momentos. Digamos que, dia sim, dia não, começo a me coçar, a andar pela casa procurando aquele prescindível objeto que me falta e sem o qual atravessar o dia se torna um tantinho mais detestável.

Quando sento para fazer uma das minhas inúmeras listas e sublinho com certa obsessão itens como “silicone de espremer limão”, “bowl para arroz japonês” ou “Bic dourada”, sei que minha tara por coisinhas está chegando com tudo e que nada mais poderá ser feito.

Para você, talvez sejam meras lojas de coisinhas. Para mim, são a balada perfeita. A viagem para um mundo enlevado. O sonho da infância com um cartão de crédito próprio. Kalunga, Leroy Merlin, Decathlon, Multicoisas e Drogaria Onofre. Eu me arrumo para adentrar esses maravilhosos estabelecimentos e sempre me pego fazendo dancinhas nos corredores. Preciso de meias para esquiar? Parafusadeira? 

Tiras para monitoramento de glicemia? Ganchos de pressão cromados? Claro que não. E por isso mesmo: óbvio que sim. A alegria que eu sinto em comprar pastas de coração torna qualquer lembrança sexual dos meus 20 anos uma bobagem. E o júbilo que me invade quando uma marca de A4 está em promoção? E o que dizer das caixas organizadoras? Para tudo, por favor! Se alguém me falar “trouxe uma caixinha organizadora de coisinhas pra você”, eu choro. Pra que ouvir “eu te amo” quando existe essa frase?

Organizar minhas coisinhas é o único e real momento de entrega, a meditação possível, um gozo longo e reparador. Não existe solidão, amigos; o que existe é uma pessoa que ainda não descobriu o fabuloso universo das coisas que organizam coisas. 

Uma coisinha é barata e carrega em si a promessa de plenitude. Cinco coisinhas ainda são baratas e multiplicam por cinco a esperança de encerrar esta tarde me sentindo completa. E nisso vou me perdendo. 

Dez coisinhas. Trinta coisinhas. Começa a ficar caro. O deleite vai azedando o fundo da língua e minguando. Segura o espírito que vai dar ruim!

Depois de chegar com uma sacola repleta de coisinhas, quase sempre sinto uma tristeza profunda. Largo o saco num canto e vou me deitar. É preciso descansar do meu derramamento inútil. “Por que sou assim?

Será que isso é doença? Não vou usar nada disso” é o mantra que vai me enterrando debaixo da sacola com muitas coisinhas. Vou tomar banho tentando equalizar minhas idades. Se comprei muitas canetinhas coloridas, busco me perdoar fazendo uma das minhas inúmeras listas de motivos para acreditar que sou uma adulta que deu certo na vida. Então faço uma lista de coisonas e vou recuperando a sensação dos  meus ossos e músculos. 

Nisso já se passou um par de horas e começo a ficar melhor. É quando, lá no canto, a vejo: a sacola cheia de coisinhas. Os próximos minutos serão de infinito alívio e da mais pura felicidade. Quem lembra das festas da década de 1980 que tinham uma bexiga pendurada no teto, com um monte de coisinhas dentro?

Um adulto doido cutucava aquilo até as coisinhas caírem todas, e a criançada ficava embaixo, desesperada. Aquele momento ficou guardado na minha memória como “a perfeição”. O palitinho do pirulito podia cegar alguém? Quem se importa? Eu levantava a saia para recolher o máximo possível de coisinhas. Viam minha calcinha? Quem se importa? Desde que no meio dos binóculos e dos ioiôs viessem pelo menos três 7 Belo, a infância estava garantida.

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