Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Ruim

A gente dava até gritinhos de êxtase, mas era tristeza

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Quero escrever sobre a ignorância, a burrice, o despreparo. Sobre gente que manda o Hamas explodir, gente que afirma que o nazismo é de esquerda, gente que chama cônjuge de "conge". O espaço desta coluna pede que, pelo menos de vez em quando, eu discorra sobre assuntos sérios. O problema é que eu vi um seriado ruim ontem e, desde então, não consigo pensar em mais nada.

Sabe quando aquele tipo de diretor "sou um artista perturbado e cheio de personalidade e referências publicitárias" se junta com aquele tipo de roteirista "sou simples, direto e chamarei de estilo o que parece falta de talento e de verba"? Então. Mas deixa pra lá, não quero dar minha opinião. Me sinto mal. São meus amigos.

Mulher assiste TV - Nicole Taionescu/Fotolia

Queria dizer à diretora de arte que uma protagonista amargurada que perdeu tudo aos 70 anos não pode ter o quarto de uma adolescente fútil. Queria dizer ao figurinista que as roupas não podem parecer toalha de mesa de boteco do Centro. Mas por que eu diria isso a alguém? Então fico na minha. A trilha sonora achei afetadíssima, quase posso ver o cara falando: "Misturei eletrônico com piano clássico e um incessante pulsar de coração". Mas não gosto de falar mal do trabalho dos meus colegas, é muito sofrido pra mim.

Quero escrever sobre o absurdo, o vexame, a boçalidade. Ditadores sanguinários sendo exaltados, religiões sendo desrespeitadas, salas cor-de-rosa para mulheres que sofrem abusos. O espaço desta coluna pede que, pelo menos de vez em quando, eu discorra sobre assuntos sérios. O problema é que eu vi um seriado ruim ontem e, desde então, não consigo pensar em mais nada.

Fiquei tão espantada que não consegui mais parar. Assisti aos dez episódios em um único dia, e a coisa foi degringolando vertiginosamente. Anotei num caderninho tudo o que mais odiei, e foram 30 páginas de rabiscos. Contudo, não posso criticar a obra. Como detonar a série se o diretor é um dos meus melhores amigos? O produtor é padrinho da minha filha. A criadora foi quem me apresentou meu marido. O protagonista cuida da minha cachorra quando eu viajo. Apesar de eu estar tomando todo o cuidado e evitando ao máximo ser específica, vai que essas pessoas percebem que estou falando delas.

Já era tarde, mas chamei meu cônjuge e ficamos enumerando as mazelas dramatúrgicas da produção até as duas da manhã. Depois que ele dormiu, eu não estava conseguindo relaxar e mandei uma mensagem para um dos meus grupos de WhatsApp, perguntando se alguém estaria acordado e toparia comentar o tal seriado --mais da metade topou e ficamos nessa até o amanhecer. A gente dava até gritinhos de êxtase, mas era tristeza. Foi superdeprê.

Estou profundamente mal com tudo isso. Não gosto de depreciar trabalhos brasileiros. Mas esse, você viu? Minha nossa. É bem pior que aquele outro.

Agora estou aqui, um zumbi, sem dormir, no meu escritório, doida para achar alguém online que queira malhar o seriado. Claro que não gosto disso, chega a me cair a pressão. Minha mãe passou para me ver. Deu a desculpa que era para me trazer umas frutas, pegar uns documentos, mas sentou aqui do meu lado e começou a descer a lenha na série. Ela também viu. A gente ficou tão excitada esculachando loucamente o episódio 7 que escureceu e eu ainda não terminei de redigir esta coluna. Enfim. Eu queria escrever sobre tantos temas. Mas vocês viram esse seriado? É ruim demais. Querem me ligar pra gente conversar?

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