Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Um velho cor-de-rosa

Pai, vai ter sim uma crônica sobre a sua colonoscopia

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Eu assisti a todas as aulas do escritor David Sedaris no site MasterClass. Primeiro porque ele é brilhante, depois porque queria saber como ele se comporta quando questionado a respeito da exposição que faz da própria família. Em determinado momento, provavelmente cansado dessa pergunta, Sedaris chama a sua irmã. Lisa está muita tranquila, até mesmo feliz, conta que desde que virou personagem de livros passou a achar seus dias mais interessantes, vívidos e, por fim, aproveita o encontro para agradecer ao irmão o presente que ganhou dele recentemente: uma linda mansão com piscina.

Meu pai não é o afortunado proprietário de um imenso e sofisticado espaço em área nobre, mas eu pago o aluguel da pequena casinha com quintal onde ele mora no Tatuapé, e vai ter sim uma crônica sobre a sua colonoscopia. Sinto muito.

Chegamos ao hospital bem cedinho, e ele começou com uma ladainha infinita sobre o Nestor, seu dachshund. Nestor não gosta muito de sair de casa. Nestor estava tenso desde que eu havia marcado aquele exame. Nestor não fazia cocô desde ontem. A qualquer momento —ele conhece bem o doguinho que tem— Nestor iniciaria uma diarreia daquelas e sujaria todo o quintal.

Corredor de hospital desfocado com pacientes ao fundo
Pixabay

O medo de meu pai, ele frisou mais de dez vezes, não era de um cano com câmera que entraria em seu ânus à procura de problemas. Sua preocupação era a solidão de Nestor esperando o dono, o uivo triste de um animal que mirava as estrelas, mas não tinha visão suficiente para as entranhas. Meu pai é tão o básico 1 de uma aula de psicanálise que senti carinho e participei de sua alienação. Passamos uma manhã confabulando sobre as fobias, as inquietações e as fezes do salsichinha.

Todo soltinho com as enfermeiras, meu pai lançou o jogo: "Vocês não adivinham minha idade". Elas toparam. 60? 65? 70? "Nenhuma acertou, tenho 80!" Elogiaram sua aparência e simpatia. Meu pai estava nas nuvens, e ainda faltavam quatro horas para a sedação. Ele escolheu a profissional mais sorridente e confessou: "Se eu fosse um velho rico, ia passar tanto creme importado na cara, ia fazer tanto laser, que viraria um daqueles velhos cor-de-rosa. Você já percebeu, mocinha, que velho rico que se cuida é tudo cor-de-rosa?".

Posso estar errada, mas para mim ficou claro que papai, além de bastante metrossexual, acha que muito dinheiro pode transformar qualquer idoso num pau jovem e caucasiano.

Notei sua mochila verde-militar. Meu pai sempre teve um fetiche escandaloso por tudo o que se refere ao Exército, incluindo até presidente que foi expulso das Forças Armadas. Mas, porque o amor é complexo, e a gente ama um pai mesmo machista, fascista e bolsonarista, senti afeto quando descobri que dentro da mochila ele levava quatro rolos de papel higiênico e um chinelo do Mickey (a vizinha de 83 anos comprou pela internet, mas não serviu direito, então ela vendeu para o meu pai).

Já dentro do quarto, sorvendo sem frescura dois copões de um líquido laranja que o faria virar do avesso, meu pai disse ao médico que se negava a ficar andando pelo hospital naquele avental de florzinhas. "Vai facilitar a diarreia, meu caro." Piorou. Ele não ia e acabou. Foi quando papai viu a bela mulher do quarto ao lado e foi acompanhá-la. Tratava-se de uma senhora esguia e refinada de uns 60 anos, fazendo seu cooper fecal no corredor. Rapidamente o marido dela apareceu. Eu me sentia vendo o sutil embate de transantes numa pista de dança, mas era a ala de colonoscopia do Oswaldo Cruz.

O exame, que costuma durar meia hora, demorou cerca de duas. Eu já estava invadindo uma área proibida, preocupada com a insuficiência cardíaca do velho, quando me pediram calma: "Ele só está repetindo o lanche pela terceira vez e fazendo graça com as enfermeiras".

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