Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina

Estreia de Katharina Volckmer traz humor mordaz, provocativo e demolidor

"A consulta" vai conquistar os fãs de romances neuróticos como "O Complexo de Portnoy"

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O livro de estreia da alemã Katharina Volckmer apresenta com maestria um tipo bem específico de humor: aquele que divide leitores entre os que apreciam verdades ditas de forma irônica, crua, mordaz, provocativa, demolidora e assertiva e entre aqueles que vão tentar chegar à última página desta obra "sofrendinho" e reclamar: "dava pra dizer as mesmas coisas sem apelar". Não sei você, mas eu procuro colecionar amigos que se concentram mais no primeiro grupo e torcer para o resto ir morar nas montanhas.

Para os fãs do romance neurótico (e dos personagens com desordens sexuais tão humanas e honestas), para os adultos que no começo da juventude leram "Complexo de Portnoy" e procuraram a mesma emoção, dia após dia, em outros textos, "A consulta" vai conquistar, sem dúvida, esses coraçõezinhos mais depravados e sarcásticos.

Deitada no que a princípio pensamos ser um divã, uma jovem de apetite sexual ao mesmo tempo enredado e fluido —e que mais para o final da obra começa a se identificar como homem trans— conta para o cirurgião Dr Seligman que não à toa escolheu um "sobrenome desses" para lhe "dar" um pênis. Sendo aquele um homem judeu, seu novo membro adquirido seria, em sua idealização, também judeu.

mulher equilibra objeto gigantesco que remete a uma salsicha
Ilustração de capa do livro 'A Consulta', da escritora Katharina Volckmer, publicado pela editora Fósforo no Brasil - Reprodução

Contudo, enquanto está deitada de pernas abertas, a narradora personagem confessa dilemas existenciais: se por um lado tem asco por ter nascido em um país que não lida diretamente com os horrores do nazismo, por outro sofre de uma fixação sexual por Hitler. Se por um lado vai usar a herança deixada pela avó para adquirir um pênis, por outro, em várias passagens que trazem uma voz feminista bem forte, acredita que "pessoas sem pau precisam ser controladas para que as pessoas com pau não se sintam intimidadas".

Jason, o antigo analista da jovem, estava tão desesperado para nunca mais ouvi-la relatar seu hábito em "gozar em cima de pequenos retratos do Fuhrer ao imaginar seu bigode fazendo cócegas nas minhas partes" que se dispôs a lhe atestar, em papel timbrado, sua "natureza calma e plácida".

Não vai ser fácil ler parágrafos como "imagine quanta diversão as criancinhas alemãs não poderiam ter tido com um campo de concentração de Lego chamado Freudenstadt- construa seu próprio forno, organize suas próprias deportações...". E, pensando em quem pudesse ficar escandalizado com essas passagens, me lembrei de quando Freud foi obrigado a escrever uma carta afirmando ter sido bem tratado pelos nazistas, e deu seu jeito de enfiar uma frase assim: "recomendo a todos os tratamentos oferecidos pela Gestapo". Ironia e inteligência agudíssimas. (Piada de mau gosto é judeu que apoia o Bolsonaro, me desculpem.)

Mas a real obsessão da personagem é com o falso selfie de um país: "não é à toa que não existe uma palavra em alemão para o prazer...[ ], nossa garganta nunca fica molhada o suficiente para chupar alguém com gosto porque nos criaram à base de muito pão seco". O livro foi negado na Alemanha e lançado na Inglaterra, onde a autora vive e trabalha.

Katharina Volckmer
A escritora alemã Katharina Volckmer, autora de 'A Consulta' - JF Paga/Divulgação

Em suas breves páginas, que eu devorei em poucas horas, o corpo, sobretudo o feminino, parece ser a maior prisão para a personagem (e também para a autora, que viveu e vive as mesmas questões de gênero). Ela narra como acompanhou, com certo nojo, os momentos em que sua mãe parecia não se importar mais com o envelhecimento. Logo depois, afirma que "só mentes muito perversas poderiam idealizar o corpo de tigres, pandas e cavalos". Os animais "correspondem ao papel deles, são perfeitas representações da espécie, têm dignidade e o formato certo". Mas para a personagem, nós, humanos, estamos sempre tentando parecer atraentes ou saudosos da força e do frescor da juventude. Estamos sempre tentando merecer um poema ou uma estátua de mármore.

Ela faz ainda uma crítica pesada à maternidade: "Às vezes acho que algumas mulheres, quando percebem o que significa serem vistas como mães, encontram uma forma de estrangular o feto dentro do útero com esse mesmo cordão umbilical que de outra maneira as teria acorrentado a uma vida de autoaniquilamento e aos nauseabundos chutneys caseiros da sogra".

Estas frases, ditas em uma palestra motivacional, ou mesmo em um Natal em família, poderiam soar grosseiras ou até mesmo provenientes de uma alma um tantinho sociopata. Mas em um fantasioso divã-mesa cirúrgica, para um pai-analista-doutor que tudo sabe e tudo pode resolver, diante de "um pau judeu" que lhe aquietasse não somente um corpo que deseja mas o desejo em ser um corpo (e ainda abrandeça uma culpa sobre a qual todos os alemães, segundo a autora, silenciam) qualquer pensamento pode e deve ser dito. E os piores pensamentos são, especificamente neste caso, os mais bonitos e generosos.

"Acho que é por isso que os ricos sempre têm cara de que acabaram de ser comidos com uma cinta peniana feita sob medida enquanto no quarto ao lado outra pessoa passava a ferro seus lençóis recém-lavados".

A consulta

  • Preço R$54,90
  • Autor Katharina Volckmer
  • Editora Fósforo
  • Tradução Angélica Freitas

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