Aproveitando a boa hora das obras de autoficção, após o merecido Nobel de literatura para Annie Ernaux, indico outra escritora brilhante e autorreferente da qual gosto bastante, a norte-americana Mary Gaitskill. Apesar desta última ter o trabalho reconhecido como ficcional, o leitor mais sensível logo percebe a força memorialística por trás dos seus relatos.
No início deste ano, resenhei seu livro "Isso é Prazer", da editora Fósforo (que também publica Annie Ernaux), e agora me encantei por "O Gato Perdido" —esse, sim, assumidamente autobiográfico—, recém-lançado pela editora Todavia.
A obra trata do desaparecimento de Gattino, um felino pequeno e frágil, cego de um olho, que desperta na autora comportamentos obsessivos e ingênuos, recalques das suas relações familiares, traumas a partir da finitude paterna e lembranças doces e sofridas de seu confuso potencial materno. Com o decorrer da leitura, fica claro que o tema real por trás da gigantesca dor causada pela falta de um gatinho são as complicadas construções e os infindáveis lutos que precisamos elaborar para estabelecer conexões humanas.
Em um mundo com "milhares de pessoas morrendo lentamente por causa das guerras e das doenças, dos ferimentos e da desnutrição", além de terremotos e furacões, Gaitskill questiona se a morte de um bicho de estimação pode ser considerada uma tragédia. Descobre, ao procurar no dicionário, que a segunda definição para tragédia é como se sente: extremamente triste, melancólica e patética.
O trauma de Gattino rememora à autora, entre outras cenas marcantes, o convívio com Caesar e Natália, dois irmãos trazidos à sua casa por uma organização que seleciona crianças de áreas urbanas carentes, "todas hispânicas ou negras, para passar temporadas com famílias brancas que moram no interior". Com os pequenos, a escritora institui uma convivência cheia de atenção educacional e compaixão: "para mim a agressividade e a carência, quase juntos, se traduzem, de um lado como um desejo pelo afeto verdadeiro […], de outro pela indignação devido à privação". Mas a relação entre eles é quase sempre dominada pela praticidade insípida de uma espécie de "cuidadora de ocasião" que escolheu, não sem angústia, não ter filhos.
Incapaz de superar a perda do bichano e tudo o que ela evoca, Gaitskill reflete sobre a sua entrega desenfreada àquele animalzinho: "o amor humano é terrivelmente falho, e mesmo quando não é, as pessoas geralmente o interpretam mal"; "é difícil proteger do sofrimento quem amamos, porque as pessoas escolhem sofrer […]. Um animal nunca escolhe o sofrimento".
Sobre a intensidade da dor que sente pela perda de Gattino, Mary a certa altura conclui que, depois que já atravessamos a terrível e inconcebível morte de nossos pais, é quase um descaramento que nossos bichinhos faleçam: "não posso ter nem um cachorro?". "É claro que um cachorro não é mais importante do que os pais, seu idiota. Os pais eram tão importantes que ele não podia se dar ao luxo de sentir sua perda. Já a perda do cachorro ele podia sentir e através desse sentimento vinha todo o resto".
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.