Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

A ferida aberta após a morte de um gato

Em obra autobiográfica, Mary Gaitskill parte do bicho de estimação para pensar o luto

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Aproveitando a boa hora das obras de autoficção, após o merecido Nobel de literatura para Annie Ernaux, indico outra escritora brilhante e autorreferente da qual gosto bastante, a norte-americana Mary Gaitskill. Apesar desta última ter o trabalho reconhecido como ficcional, o leitor mais sensível logo percebe a força memorialística por trás dos seus relatos.

No início deste ano, resenhei seu livro "Isso é Prazer", da editora Fósforo (que também publica Annie Ernaux), e agora me encantei por "O Gato Perdido" —esse, sim, assumidamente autobiográfico—, recém-lançado pela editora Todavia.

mulher branca de cabelos grisalhos e longos e óculos em cozinha
A escritora americana Mary Gaitskill em sua casa, em Rhinebeck, Nova York - NYT

A obra trata do desaparecimento de Gattino, um felino pequeno e frágil, cego de um olho, que desperta na autora comportamentos obsessivos e ingênuos, recalques das suas relações familiares, traumas a partir da finitude paterna e lembranças doces e sofridas de seu confuso potencial materno. Com o decorrer da leitura, fica claro que o tema real por trás da gigantesca dor causada pela falta de um gatinho são as complicadas construções e os infindáveis lutos que precisamos elaborar para estabelecer conexões humanas.

Em um mundo com "milhares de pessoas morrendo lentamente por causa das guerras e das doenças, dos ferimentos e da desnutrição", além de terremotos e furacões, Gaitskill questiona se a morte de um bicho de estimação pode ser considerada uma tragédia. Descobre, ao procurar no dicionário, que a segunda definição para tragédia é como se sente: extremamente triste, melancólica e patética.

O trauma de Gattino rememora à autora, entre outras cenas marcantes, o convívio com Caesar e Natália, dois irmãos trazidos à sua casa por uma organização que seleciona crianças de áreas urbanas carentes, "todas hispânicas ou negras, para passar temporadas com famílias brancas que moram no interior". Com os pequenos, a escritora institui uma convivência cheia de atenção educacional e compaixão: "para mim a agressividade e a carência, quase juntos, se traduzem, de um lado como um desejo pelo afeto verdadeiro […], de outro pela indignação devido à privação". Mas a relação entre eles é quase sempre dominada pela praticidade insípida de uma espécie de "cuidadora de ocasião" que escolheu, não sem angústia, não ter filhos.

Capa de livro com ilustração de um gato preto com apenas um olho, de cor amarela
O Gato Perdido, de Mary Gaitskill - Divulgação

Incapaz de superar a perda do bichano e tudo o que ela evoca, Gaitskill reflete sobre a sua entrega desenfreada àquele animalzinho: "o amor humano é terrivelmente falho, e mesmo quando não é, as pessoas geralmente o interpretam mal"; "é difícil proteger do sofrimento quem amamos, porque as pessoas escolhem sofrer […]. Um animal nunca escolhe o sofrimento".

Sobre a intensidade da dor que sente pela perda de Gattino, Mary a certa altura conclui que, depois que já atravessamos a terrível e inconcebível morte de nossos pais, é quase um descaramento que nossos bichinhos faleçam: "não posso ter nem um cachorro?". "É claro que um cachorro não é mais importante do que os pais, seu idiota. Os pais eram tão importantes que ele não podia se dar ao luxo de sentir sua perda. Já a perda do cachorro ele podia sentir e através desse sentimento vinha todo o resto".

O Gato Perdido

  • Preço R$ 49,90 (80 págs.)
  • Autor Mary Gaitskill
  • Editora Todavia

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