Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi

Nada é mais difícil do que educar um filho

A verdade é que tenho um respeito profundo e infinito por tanta intensidade e valentia.

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Desde bebê minha filha fica indignada quando algo não sai exatamente do jeito que ela deseja. Me encara com seus olhos enormes (lindos) e furiosos. Esmaga com a força de dez mulheres adultas o brinquedo que encontra pela frente. Esbraveja, muitas vezes testando novas palavras (que saem erradas, mas ela não perde a grandeza), e diz que quer morar sozinha (ela tem cinco anos). Eu fico fascinada e não disfarço. Se a repreendo, teatralizando semblantes de decepção, nós duas sabemos que estou mentindo. A verdade é que tenho um respeito profundo e infinito por tanta intensidade e valentia.

Muitas vezes, porque infelizmente convivo com adultos, discípulos de livros chatos sobre educação reprovam meu desmedido (e, segundo eles, equivocado) encantamento pela rebeldia de Rita. Faço de conta que tenho muito a aprender e que estou disposta a receber a ajuda de pessoas melhores, mais experientes e mais maduras do que eu. Mas por dentro, ainda que exaurida e envelhecida, sigo levantando, numa plateia imaginária, uma faixa que diz: "Go, Rita, go!".

Fui uma criança muitíssimo boazinha, comportada, fofa, e aos 17 anos comecei a ter anorexia nervosa e crises de pânico. Passei mais de uma década pesando 43 quilos e sofrendo com diarreias vorazes a cada sinal de tensão ou perigo. Um dia, parei com a fobia fantasiosa de que a comida me envenenaria e deixei que meu próprio veneno ocupasse a linguagem. A partir disso me tornei alguém. Não sei se alguém bom ou correto.

Quando levei minha filha para fazer análise pela primeira vez, ela tinha pouco mais de dois anos. A jovem analista, com a frieza soberba dos inseguros, me disse: "amar não é educar". Eu nunca mais pisei naquele consultório. Não acho que ela estivesse errada, mas acho que posso me proteger de pessoas corretas. Não quero amores, amigos e analistas corretos. Não consigo educar minha filha para que ela seja o que não aprecio.

A panda Bai Yun e seu filhote Mei Sheng no zoológico de San Diego, na Califórnia, em 2004 - 25.mai.04/San Diego Zoo via AFP

Quero que minha filha saiba que sua raiva tem lugar. Que impetuosidade, criatividade, loucura, ciúme, inveja, tudo isso tem lugar. Nenhum desses lugares é a minha bochecha recebendo um tapão de mãozinha aberta, mas sobre isso estamos em negociação constante e sei que chegaremos lá. Todas as suas partes feias e imperfeitas também moram, se alimentam e dormem nessa casa. Para tal empreitada, estou sozinha. Nenhum parente, amigo, companheiro ou pediatra me respalda. Todos os livros e todas as pessoas "que sabem alguma coisa" querem que uma mãe crie um filho para que ele seja somente bom, educado e correto.

Deixo Rita rabiscar as paredes do seu quarto e do corredor. Um amigo (artista e filiado ao PSOL) ficou indignado: "E se daqui a 15 anos ela quiser fumar crack?". Quando o assunto é educação de uma criança, até o Mujica parece querer assinalar "bebês militares" em voto impresso.

Meu pai, que, aos 82 anos, anda com certa dificuldade, mancando, um dia estava na sala conversando com alguns amigos meus. Do quarto, minha mãe perguntou para a Rita onde estavam as pessoas, e ela respondeu: "Estão com o veio sem coluna". Ali, onde uma tia minha viu um grave alerta chamado "desrespeito a idosos", eu vi a salvação da humanidade: o humor. Entendo a relutância que sentem em me apoiar nessa dura e solitária empreitada que é criar uma filha sem acreditar no conceito medíocre e limitado de "ser uma boa pessoa".

Não aguento ouvir que eu deveria agarrá-la menos, beijá-la menos e educá-la mais. Apaixonadíssima, me pego cheirando em êxtase suas roupinhas suadas. Quando penso que sofri tanto por homens, achando que vivia grandes amores, dou risada. Outro dia vi um vídeo de uma mamãe panda mordendo a cara inteira de seu bebê panda. Lambendo seus olhos. Brincando de enfiá-lo embaixo de suas axilas. Este é um texto para mim e para essa mamãe panda: vai dar tudo certo.

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