Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Tati Bernardi

Eu tinha certeza de que havia feito algo de muito errado contra ela

Sou de uma geração que aprendeu a ser chefa com os publicitários da década de 1990

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Há dez anos essa garota me procurou para pedir um estágio. Na época eu tinha uma espécie de microprodutora de roteiros de humor para cinema e televisão.

Almocei com ela e fiquei fascinada. Rápida, engraçada, sedutora, cheia de histórias maravilhosas. Mas lamentei que já estava trabalhando com dois assistentes e não teria grana para contratar uma terceira pessoa.

Ela insistiu que só queria aprender, que não precisava de salário naquele momento, que encararia a proximidade como uma escola. Insistiu muito e eu nem entendi na hora. Eu nunca fui exatamente boa em roteiros. Posso dar muitas ideias divertidas, fazer diálogos espertos, mas detesto pensar estruturas, detesto sala de roteiro e, francamente, como roteirista, quem sou eu na fila do pão?

Ela já era uma jornalista conhecida e uma escritora prestes a estourar. Não fazia muito sentido colocá-la nesse lugar de jovem aprendiz, mas ela fincou o pé e apareceu na minha casa na manhã seguinte.

Em duas semanas, avisei que não seria estágio, tampouco sem remuneração. Ela era muito envolvida, dedicadíssima, escrevia alucinadamente e o material quase sempre era excelente. Passei a lhe dar 15% do valor de todo trabalho que eu fechava. Poucos meses depois, ela já ganhava o dobro desse valor. Isso, claro, quando os pagamentos entravam (porque ainda tentam convencer alguns roteiristas que é preciso trabalhar por amor ao cinema enquanto tem sempre algum homem branco ficando rico).

Virei uma obcecada pela criatura. Chamava para todos os projetos, levava em todas as reuniões, indicava para todas as pessoas. Frequentou minha casa, festas da minha filha. Eu falava dela o dia inteiro, para todo mundo. Falava dela em todos os meus cursos, podcasts, crônicas, era bem notório o meu amor. Fui grávida de 9 meses no lançamento do seu livro (uma época da minha vida em que eu não ia nem até o meu próprio escritório de tanta lentidão e cansaço).

Montagem sobre "chefe"
Hayley Maxwell na Unsplash

Tal pessoa, não me surpreende nada, acabou tendo muito destaque em sua trajetória de jornalista, escritora e comunicadora. E eu seguia aplaudindo e querendo encontrá-la. Mas ela me arrancou da sua vida. Não respondia mensagem. Não respondia e-mail. Foi quando eu tive a certeza de que havia feito algo de muito errado.

Fui até sua casa, com um presente ridículo de casamento. Sentei-me na sua frente. E implorei: me fala. O que eu fiz de errado? Tenho certeza de que errei. Sou de uma geração que aprendeu a ser chefa com os publicitários da década de 90. Certamente já fui moralmente abusiva com funcionários. Posso ser bem desgraçada e arrogante. E esse é o tema maior da minha análise. Eu errei com algumas pessoas com quem já trabalhei e isso me dói todas as noites antes de eu dormir. Mas eu estava ali. Na frente dela. Me fala, por favor. Eu adoro você. Eu te admiro. Eu fui filha da puta? Eu te explorei? Te paguei pouco? Eu quero melhorar. Eu vou melhorar. Me diz. Você é de outra geração e pode me ajudar. O que eu fiz?

A garota me falou que estava deprimida. Que nada absolutamente nada havia acontecido. Me contou seus planos profissionais. Me contou situações engraçadas com sua família. Demos risadas. E ela novamente sumiu.

Depois disso, nos encontramos em um parque e ela fez que não me viu. A mãe dela também fez que não me viu. E PASMEM: o cachorro dela me virou a cara. Eu tinha feito algo. Meu deus. O que eu fiz?

Procurei colegas em comum: o que eu fiz pra fulana? Não sabiam. Voltei a lhe escrever. Fiz algo medonho, macabro, bizarro, sou uma psicopata, sociopata, pior pessoa do mundo? Ela dizia: não, sua doida, eu só não te vi no parque. Minha mãe não te viu. Não falou nada sobre o cachorro.

Talvez eu devesse pedir um estágio não remunerado para aprender a ser cruel. Talvez eu passasse a ganhar 15% em duas semanas e o dobro em poucos meses? Talvez.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.