Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
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Metáfora da forja é lembrete diário de que carregamos em nós nosso sentido oposto

Quantas vezes você não quis ir a uma festa e acabou numa fábrica?

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Não parece interessantíssimo que o verbo "forjar", que pode significar "modelado por uma forja", também seja usado como sinônimo de "invenção" (e ainda "adulteração" e "falsificação")? Ser uma pessoa "forjada", ao menos no dicionário, é de saída conter seu antônimo e sua sombra –algo bem psicanalítico.

Nunca me esqueço de quando um amigo, que tanto preza por seu caráter e pela boa educação recebida, me contou ter agido de maneira "forjada" em uma situação específica. Vibrei por dentro. Pensei: "Ele mente! Ele engana! É agora que vamos entrar em contato com o lado feio desse grande queridão e vamos dançar no espaço amalgamados por uma humanidade torpe que nos espanta e nos lança ao mundo".

Mas meu amigo estava falando (e talvez falasse disso o tempo todo, agora concluo) de como tinha a pele marcada, feito um boi obediente, pelo brasão cultural que o rodeava. Acredito que ele devesse se sentir inserido em formas, moldes, costumes, expectativas e tradições, algo bastante comum para a elite intelectual (e financeira) que me cerca. São pessoas a partir de pessoas. São os "consanguíneos venceremos". Alguns, com mais sorte, nasceram entre bibliotecas e aprumos, mas minha inveja (ou curiosidade forjada) sempre se pergunta: se não tiveram que ir atrás de seus livros e de seus modos, quem são eles para fora de seus núcleos de elegância protecionista?

Demonstração de forja de espada japonesa (katana) por ferreiros artesanais, os toushous - Marcelo Hide/Folhapress

Já eu, em algum momento, acreditei que, para me tornar o que queria, precisava negar tudo, inventar tudo, fingir tudo. O meu "forjar" negou a prensa e se autoadulterou até fantasiar que podia se tornar uma peça única. E não se faz isso sem solidão, loucura e dor. O que eu queria era totalmente diferente de tudo o que eu via dentro da minha casa, nas escolas em que estudei e mesmo no meu entorno social e afetivo.

Precisei alterar senso, movimento e fonética. E, por esse motivo, muitas vezes sou acometida por uma sonolência indissimulável, seguida de dores nas costas, quando me enfio em uma redoma de conhecidos de longa data e eles se comportam como cópias enfileiradas cuspidas por uma linha de montagem. Quantas vezes você não quis ir a uma festa e acabou numa fábrica? Pessoas igualmente perdidas que, ao se verem juntas, forjam um status de "achadas".

Dito isso, nada disso é verdade, ou ao menos não é verdade absoluta. A metáfora da forja como existência é um lembrete diário de que carregamos em nós nosso sentido oposto. A mulher que forjo ser não seria nada se não bebesse todos os dias das histórias da minha infância e da minha juventude. Não fossem os personagens que pensei ter negado, mas que aparecem em todos os meus textos, eu não alcançaria, vez ou outra, a voz autêntica pretendida. Não fosse toda a minha incapacidade de "despertencer", eu jamais alucinaria ter chegado (finalmente!) a qualquer lugar já cultuado por mim, para então me dar conta do tamanho do seu vazio e da sua irrelevância.

A decepção talvez seja a única criatividade possível, e não chegar a lugar algum, a melhor exposição do nosso trabalho.

Por outro lado, imagino como sofrem os marcados por ferro fundido que se negam a viver bovinamente. Esfregam (no sentido de "surrar", mas não sem carregar seu antônimo/sombra: "polir") seus brasões até sair sangue. Não fossem tão excepcionais, seriam mais felizes.

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