Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Folhajus

AGU, não existe liberdade constitucional de discriminar LGBTs

Recurso da Advocacia-Geral contra punição à LGBTfobia não é conservador, é reacionário

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Se estiver em busca de um exemplo de raciocínio jurídico reacionário, os embargos de declaração da Advocacia-Geral da União (AGU) contra a criminalização da LGBTfobia apresentados na última quarta (14) não hão de decepcionar. Por reacionário, uso aqui a definição de Albert Hirschman em “A Retórica da Intransigência” (1991), para quem uma das teses reacionárias é a da ameaça: “O custo da reforma ou mudança proposta é alto demais, pois coloca em perigo outra preciosa realização anterior”, define Hirschman.

O recurso da AGU quer que creiamos que a criminalização da LGBTfobia ameaça gravemente outras liberdades constitucionais. Não ameaça. Trocando o juridiquês do recurso da AGU nos miúdos reacionários que floreia, o que o Advogado-Geral da União quer é que o STF reconheça que a criminalização da LGBTfobia impõe tamanha ameaça existencial para liberdades como as de expressão, profissional, comercial. Não impõe.

Nem a maioria a peça da AGU representa: apesar de sermos um país violento contra LGBTs, 74% dos brasileiros dizem que homossexualidade deveria ser aceita por toda a sociedade, segundo Datafolha de 2018. Peça invisibiliza, ademais, LGBTs religiosos que não vêem sexualidade e religião como mutualmente excludentes, como faz crer a AGU. Ao invés de enfrentar a questão em sua complexidade, a AGU essencializa o debate como um duelo inconciliável, retórica tipicamente bolsonarista –e o faz de forma juridicamente perigosa.

Ao recorrer à dicotomia entre LGBTs, de um lado, e cristãos, de outro, a AGU fracassa em compreender a complexidade da realidade que propõe que o STF regule. A mesma lei que agora protege LGBTs depois da decisão do STF (lei 7716/89), protege em pé de igualdade a religião.

Não está em jogo aqui eventuais restrições ao que um religioso fale em uma cerimônia religiosa. Quando reconheceu a criminalização da LGBTfobia em 2019, STF deixou claro que resta assegurado “o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados”, desde de que não configure discurso de ódio.

Recurso da AGU pede que o STF vá além: reconheça liberdades constitucionais que não existem. Alguns exemplos da peça da AGU. Quer que o STF reconheça liberdade de empresas negarem atendimento a pessoas LGBTs em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero. Nesta questão, a AGU cita o caso Masterpiece Cakeshop (2018) da Suprema Corte dos EUA onde se debatia a rejeição de venda de um bolo a um casal homoafetivo. AGU não leu o caso: a decisão da Suprema Corte dos EUA era, especificamente, sobre hostilidade contra a religião por parte do órgão que investigou o caso, não sobre a liberdade de discriminar.

AGU quer, ademais, que seja reconhecida a liberdade de “controle de acesso a espaços de convivência pública”, e cita como exemplos “restrição de ingresso em banheiros, vestiários, vagões de transporte público e até estabelecimentos de cumprimento de pena.” Ou seja, para a AGU, é liberdade constitucional colocar uma placa “não é permitida a entrada de pessoas trans” em banheiros abertos ao público como em shoppings ou impedir, com base na sexualidade ou identidade de gênero, o acesso ao transporte público. Quer, portanto, legalizar a segregação.

Não é porque o recurso da AGU tenha poucas chances de prosperar no STF que ele seja menos perigoso. É exemplo de desvio institucional: com o recurso, a AGU se torna porta-voz jurídica não da União, regida pela constituição, mas do bolsonarismo que ocupa a cadeira de presidente. AGU finge fazer uso da Constituição para esvaziá-la de seu sentido. É o que os professores de Yale, Reva Siegel e Douglas NeJaime, chamam de “preservação pela transformação”: mudar profundamente o sentido da Constituição, ao mesmo tempo em que dizem que estão fazendo nada além de interpretá-la.

AGU quer que creiamos que a ordem constitucional – que determina que a lei puna a discriminação – cairá por terra se as pessoas não puderem discriminar LGBTs. Não é uma peça em defesa de uma maioria cristã silenciosa e oprimida contra o ativismo judicial progressista: o recurso da AGU é o exemplo de uma retórica hiperbólica que, por argumentos frágeis, quer que o STF reconheça liberdade constitucional de discriminar LGBTs.

Cabe ao STF dizer que, por baixo dos pomposos argumentos jurídicos da AGU, jaz um ataque à República. Hoje, o assalto é contra LGBTs, amanhã há de ser contra quem ouse expor que o rei está nu de argumentos.

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