Aos migrantes, Bolsonaro reserva tiro, Covid-19 e bomba. O governo federal prepara, com frieza, uma tragédia nas fronteiras do Brasil com a Venezuela, em Roraima, e com o Peru, no Acre.
Em razão da pandemia, a norma vigente restringe a entrada no Brasil a migrantes com residência ou que tenham família no país, mas proíbe o ingresso de venezuelanos sob qualquer hipótese, apesar de inexistir recomendação da Anvisa nesse sentido. Tampouco a regra permite solicitação de refúgio, o que viola tratados internacionais. A contrario sensu, migrantes por terra estão proibidos, mas turistas por via aérea podem ingressar no Brasil.
Na fronteira Brasil-Peru, a situação é igualmente dramática: 500 migrantes, em sua maioria haitianos, encontram-se neste momento em Assis Brasil (AC), parte deles acampados na ponte que liga os dois países. Migrantes protestam numa encruzilhada: do lado peruano, um cordão violento de militares e policiais reforça a proibição de entrada, formalizada no último sábado (27) por uma portaria do governo peruano.
Do lado brasileiro, o Ministério da Justiça autorizou, na última semana, o emprego da Força Nacional para o “bloqueio excepcional e temporário de saída do país de estrangeiros” por 60 dias.
Trata-se de uma tragédia anunciada: no dia 16 de fevereiro, centenas de migrantes haitianos tentaram cruzar a fronteira, sendo recebidos com violência pelos militares e policiais peruanos. “Há gestantes que estão perdendo seus bebês na calçada”, disse à Folha a secretária de Assistência Social.
Ao invés de fortalecer os esforços municipais de acolhida humanitária e regularizar o fluxo de migrantes e solicitantes de refúgio, o governo federal decidiu ingressar com ação de reintegração de posse da ponte entre os dois países, protocolada pela Advocacia-Geral da União (AGU) na sexta-feira (26) e rechaçada pelo Ministério Público e Defensoria federais. Cabe ao Judiciário buscar uma solução pacífica.
Em migração, xenofobia tende a ofuscar a realidade, e a dor humana evapora em números frios. O Brasil hoje é porta de saída, não de entrada, de haitianos, após pico de imigração do país ao Brasil entre 2010 e 2015.
Concentrados no sul do país, por causa dos laços ali estabelecidos, haitianos viajam longas distâncias em direção ao Acre com a esperança de, ao final, chegar aos EUA. Encurralá-los na fronteira, tampouco, serve a qualquer propósito de conter a pandemia, crescente na região.
No Acre, o governo brasileiro prepara o terreno para o confronto. A medida viola normas internacionais, como os princípios interamericanos de 2019 onde se lê que ações de segurança devem visar a proteção de migrantes (Princípio 65), e a lei brasileira de migração, de 2017, que assegura o direito de migrantes de protestar na ponte.
Em Roraima, ao invés de auxiliar as autoridades locais a fortalecer o sistema de saúde e organizar o fluxo migratório em uma fronteira já perene, o governo decide simplesmente pelo fechamento fronteiriço.
Eis as palavras potentes da Declaração de Independência do Haiti, de 1804, primeira nação a abolir a escravidão permanentemente após revolução negra.
“Nós ousamos ser livres, sejamos, pois, para nós mesmos e por nós mesmos. Imitemos a criança em crescimento: seu próprio peso rompe as fronteiras que se tornam obstáculos para se erguer. Que povo combateu por nós? Que povo quer colher os frutos de nosso próprio trabalho? E que absurdo desonroso vencer para ser escravo.”
Não é com tiro de canhão que se resolverá a encruzilhada em que se encontram migrantes na fronteira brasileira, muitos deles crianças e mulheres. O governo brasileiro oferece truculência a um povo que inventou a liberdade. Não funcionou em 1804, não funcionará agora.
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