Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Descrição de chapéu Folhajus

Trump era o boy lixo de Bolsonaro

Com Biden, Bolsonaro deve escolher entre irrelevância, pragmatismo ou radicalismo

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Todo amor tem seu fim. O de Bolsonaro por Trump também, o que era esperado já que se tratava de um amor apenas platônico e unilateral. Em setembro de 2019, quando Bolsonaro declarou seu amor a Donald Trump com um entusiasmado “I love you” (eu te amo), Trump respondeu friamente “nice to see you again” (“bom te ver de novo”). Quem estuda como masculinidade molda política internacional (sobre o tema, recomendo o livro “Rethinking the man question: sex, gender and violence in international relations”), vê aqui um prato cheio para a análise.

Deve ser difícil para um presidente da república cuja ascensão política está calcada em ultranacionalismo e homofobia, como é o caso de Bolsonaro, sofrer com a desilusão de um amor não correspondido do qual ficam para a posteridade apenas cenas de subserviência por parte do presidente brasileiro, como quando filmou a si mesmo assistindo a pronunciamentos do seu colega norte-americano. Quem dera fora apenas um amor não correspondido; era, ademais, um amor tóxico.

Sob Bolsonaro, Brasil cedeu a Trump inúmeras vezes e, em troca, recebeu essencialmente acenos simbólico-ideológicos que se dissipam no ar, junto com o que restava da influência de Ernesto Araújo na política externa brasileira. Em dois anos de política externa bolsolavista, o Brasil prorrogou a medida que zera o imposto de importação sobre o etanol americano, viu Trump anunciar barreiras aos produtos siderúrgicos do Brasil, sentou-se ao lado do presidente americano enquanto este dizia não fazer “nenhuma promessa” sobre evitar sobretaxar produtos brasileiros, estendeu isenção de visto a cidadãos americanos sem contrapartida, e por aí vai.

É fato que diplomacia presidencial é relevante, e não apenas no caso de Bolsonaro. Seja na busca por inserção nas instituições e regras internacionais da era FHC, seja na inserção pela diversificação dos laços internacionais, com ênfase na América Latina e África, da era Lula, seja na continuidade autocontida e menos expressiva da era Dilma, presidentes da república colocam sua marca pessoal na política externa.

O que difere Bolsonaro de seus antecessores é que o caráter personalista da política externa assume posição de única direção –errática, diga-se– desta política. Sem Trump, Bolsonaro e seu chanceler têm três escolhas em política externa: aprofundar sua irrelevância internacional, render-se ao pragmatismo para o bem do país que governa ou radicalizar-se aliando a Putin, Órban e cia.

Hipótese 1: irrelevância. Sem Trump, a diplomacia presidencial de Bolsonaro pode vir a ser o que sempre aspirou ser: nos colocar em posição de irrelevância, como párias internacionais, termo utilizado com orgulho pelo chanceler brasileiro recentemente.

Sob Trump, Bolsonaro encontrou seu lugar em coalizões conservadoras fluidas, em geral contra moinhos de vento como globalismo abortista, ameaças à família heterossexual e cristofobia global. Exemplos disso são a Declaração de Consenso de Genebra, sobre a família tradicional –do qual participaram países nada consensuais como Brasil, Hungria, Egito, Indonésia e Uganda– e a Comissão de Direitos Inalienáveis, uma ousada tentativa de redefinir direitos humanos com tom religioso. Biden já indicou que não continuará com estas iniciativas.

Se seguir por este caminho num mundo pós-Trump, os próximos dois anos da política externa de Bolsonaro serão marcados por mais isolamento, como já é no caso da vacina: o único país democrático contra a vacina para o covid-19, enquanto até Trump se rendeu à vacina e investiu num programa de imunização. O fiasco recente da política externa brasileira com a Índia e os atritos com o nosso parceiro comercial mais relevante, a China, mostram os perigos de se investir todas as fichas na relação personalista entre Brasil e EUA e não diversificar nossas relações Sul-Sul, como fez Lula.

Hipótese 2: pragmatismo. Relações EUA-Brasil são relevantes, e têm sido desde que os EUA assumiram o poderio internacional que têm (aqui vale ler o clássico de Monica Hirst, “Brasil-EUA: desencontros e afinidades). São relevantes do ponto de vista estratégico, geopolítico, de segurança, comercial, entre outros, como ressaltou um relatório do Congresso dos EUA em julho de 2020. Atores privados como o agronegócio, organizações não-governamentais, ambientalistas e outros setores continuarão a manter a relevância desta relação, com ou sem Bolsonaro.

Antevendo as possíveis tensões entre Brasil e EUA na área climática, Bolsonaro, se agisse no melhor interesse nacional, encontraria formas pragmáticas de manter as relações na área com os EUA. Oliver Stunkel, em recente artigo na Americas Quarterly, elencou uma série de possibilidades por meio das quais este pragmatismo poderia ocorrer. Biden poderia se juntar aos parceiros europeus na pressão ao Brasil, e até vender o tema como fortalecimento do arsenal tecnológico e militar do Brasil. Com uma China cada vez mais bélica, e com EUA cada vez mais integrado ao multilateralismo rejeitado por Ernesto Araújo, Brasil precisa escolher as lutas que quer e pode travar.

Hipótese 3: radicalismo. O tempo dirá, por fim, se o que era amor por Trump era, na verdade, amor pelos métodos antidemocráticos trumpistas. Se este for o caso, o que parece ser, Bolsonaro terá outros amores possíveis, como o de Putin na Rússia, Orbán na Hungria ou Duterte nas Filipinas. O que não faltam são autoritários para quem Bolsonaro pode dizer “I love you”. Quando vi a advogada do líder opositor russo Alexei Navalni sendo presa de forma violenta na frente das câmeras em Moscou, no meio de uma entrevista, lembrei no exato momento do Ministro da Justiça brasileiro, André Mendonça, ameaçando advogados críticos do governo de prisão.

Se não for impedido de fazê-lo, não há razão para Bolsonaro não caminhar para o radicalismo na política externa, ou para ao menos tentar. O que parecia amor por Trump era na verdade amor por autoritarismo; o que era uma retórica de liberdade escondida nas bandeiras dos EUA dos perfis bolsonaristas não passava de um amor tóxico não correspondido. Com o devido respeito que as históricas relações Brasil-EUA merecem, Trump era o boy lixo de Bolsonaro. Cabe ao setor privado, à diplomacia profissional, e às instituições de plantão dizerem: supera, amigo.

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