Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Curuzu é a capital do Carnaval negro do país

É o bairro com maior percentual de população negra no país, segundo o IBGE

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Passei boa parte dos meus dias de Carnaval em Salvador, "comendo" água e "forrando" o estômago de caldo de sururu no Curuzu, na região da Liberdade, bairro com os maiores índices de população negra no país, de acordo com dados do IBGE.

Ali de me integrei ao desfile do Bloco Afro Ilê Aiyê, conhecido simplesmente como Ilê, que, em língua iorubá, significa "mundo negro" ou "casa de negros".

Não é algo simples desfilar no Ilê. Em primeiro lugar, o Ilê não faz uso de abadás nem fantasias. Em segundo, ele não se caracteriza, ele se encorpa, e seus foliões têm vestimentas –o Ilê, afinal, é pura representação, ele é uma entidade a desfilar pelas ruas da cidade, como toda instituição gerada de uma matriz africana, ligada à oralidade e à religião.

Fundado em novembro de 1974, por Antônio Carlos dos Santos, o Vovô do Ilê, com o suporte espiritual de Hilda Dias dos Santos, Yalorixá do terreiro Ilê Axé Jitolu, sua mãe, é um bloco que mantém tradições e rituais. Antes de sair em desfile, a caminho do Campo Grande, Mãe Hilda Jitolu (1923-2009), como era conhecida, promovia um "ato cultural-religioso", abençoando o bloco e seus participantes, distribuindo milho cozido e pipoca, alimentos da tradição de Oxalá, que é o orixá da paz, e de Obaluaiê, patrono da saúde, da cura.

E o ritual ficava completado quando o céu do Curuzu ficava tomado por uma revoada de bombas brancas, anunciando a presença da Deusa do Ébano –eleita em evento festivo entre as mulheres da comunidade–, dando início ao Carnaval do bloco.

O Bloco Ilê Aiyê é um dos grandes marcos de retomada da consciência racial da luta do negro no Brasil e sua emancipação. Nós anos de 1970, o negro assumia novo protagonista, um dos primeiros na história de um povo, do pós-Abolição.

Na Bahia, dois anos depois do nascimento do Ilê, surge o Bloco Olodum e, no âmbito nacional, 1978, em São Paulo, é fundado o Movimento Negro Unificado, o MNU, e, no Rio de Janeiro, três anos antes, o Instituto de Pesquisa das Culturas Negras, o IPCN.

Fundar um bloco com integrantes só de jovens negros foi ousado, provocando críticas violentas da elite branca e da imprensa da época. Por exemplo, o jornal A Tarde, classificou o bloco de "racista" e de propagar "intenções subversivas", pelo arrojo de uma estética africanizada, vinculando com isso o povo negro brasileiro ao afro-americano, onde pontificava Ângela Davis e o revolucionário movimento Black Power, onde o punho cerrado era o símbolo do grupo político.

Na primeira aparição pública, um ano após ser fundado, o fusca emprestado para o desfile desapareceu e os componentes do bloco foram obrigados a cantar a música no gogó mesmo –na época a composição "Que Bloco é Esse", de autoria de Paulinho Camafeu, composta especial para o Carnaval e ainda hoje um dos seus maiores sucesso. Um dos refrões, dizia: "Que Bloco é esse / Eu quero saber / É o mundo negro / Que viemos cantar pra você.", mais tarde tão popularizada nas vozes de Gilberto Gil, Daniela Mercury, Sandra de Sá e banda O Rappa.

O Ilê "causou" na avenida, como causa até hoje, com muita tradição e beleza, que tem a ver com sua raiz e africanidade. A proposta de reafricanização do Carnaval, com o ritual do "padê", ou seja, abertura de caminhos, trouxe o negro, tão marginalizado pelo racismo e discriminação, como o principal elemento da cena do Carnaval baiano, uma das importantes manifestações culturais do mundo.

São mais de quase 50 anos de história, resistência e protagonismo afro-brasileiro. O bairro do Curuzu, nos dias de folia, se transforma numa colorida passarela, onde mesclam ritmos de candomblés e sambas. A grosso modo, é o Sambódromo baiano. Sua trajetória faz parte da vida da Bahia e está belamente registrada na obra "Ilê Aiyê – 40 Anos", livro de autoria coletiva, escrito por Jaime Sodré, Maria de Lourdes Siqueira, Ana Célia da Silva, Rita Maia e Arany Santana.

Como diz a canção, o "vulcão da Bahia é tambor de Ilê Aiyê". Somos black power, meu bródi. Ninguém segura o "mais belo dos belos" blocos do Carnaval da Bahia e do Brasil, forte também no empreendedorismo e na educação.

Este ano a "festa no Ganzuá" do Ilê, foi para festejar o fundador da República de Angola, Agostinho Neto, que completou centenário de nascimento no ano passado. A marca da diáspora, espécie de pan-africanismo, banhado no dengue, continua pontuando os passos do Ilê Aiyê. E que continue assim.

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