Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Chacina da Candelária faz 30 anos com lembrete de uma história de tristeza

O país ainda leva consigo os episódios do passado que incomodam e nos violentam enquanto uma nação

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Há 30 anos, na noite do dia 23 de julho de 1993, um grupo de oito rapazes, jovens cidadãos brasileiros, foram mortos covardemente por ocupantes de dois veículos com placas clonadas —ocupantes de um Chevette e um táxi, até hoje sem identificação.

Este é o começo do enredo trágico do que se convencionou chamar de chacina da Candelária, mais um episódio triste do crime carioca e brasileiro ocorrido às barbas da justiça, em pleno centro produtor e comercial do Rio de Janeiro.

Naquele dia, como era de costume, dezenas de jovens se aglomeravam, em busca de sossego, repouso e alguma noite de sono, sob as marquises de bancos e prédios comerciais, entre a igreja centenária, construída pela elite branca colonial no século 18, e o imponente edifício do Centro Cultural Banco do Brasil, o CCBB.

Oito desses jovens, na faixa de 11 a 19 anos, perderam a vida no local, outros tantos ficaram feridos ou conseguiram escapar da sanha assassina e sanguinária de milicianos, como relevaram investigações posteriores.

Associações ligadas aos direitos humanos e à Anistia Internacional apuraram que, naquele período, cerca de 44 de um número de 70 pessoas que viviam em situação de rua naquele perímetro urbano, ou seja, nas proximidades da igreja ou pelo centro da cidade, perderam a vida de forma violenta, sendo a maior parte das vítimas identificadas como pretas e pobres.

Fachada da igreja da Candelária que fica próxima do local da chacina da Candelária, no Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

Diversos institutos de pesquisas —como o Datafolha, o Data Labe, o laboratório de dados e narrativas da Favela da Maré, um dos maiores complexos comunitários cariocas e o Centro de Estudos de Segurança Pública e Cidadania, o Cesec— são concordes em apontar que negros e pobres são mais abordados e agredidos por policiais e agentes de segurança privados do que pessoas brancas.

Vem daí, certamente, a causa de tanta violência e extermínio.

Evidentemente, sendo a cor da pele o maior alvo de tais abordagens, não podemos descartar o racismo, dentre os seus grandes fatores, como estrutura e como modelo de sistema, ao analisarmos ocorrências como essas.

Pobres e negros têm sido alvo de ações violentas e por chacinas não é de hoje, o que não é novidade —todas dentro do requinte de crueldade.

Para ilustrar, assim foi no século 19, na matança que ficou conhecida como o Massacre da Gravata Vermelha, durante a Guerra de Canudos, na Bahia, onde cerca de 15 mil civis foram mortos, a maioria degolados, daí o nome "gravata vermelha", além de seu líder, o beato Antônio Conselheiro, que teve o corpo depois violado.

O ano de 1993 foi o das ações dos chacinadores, em geral ligados à milícia e a policiais aderentes ao crime organizado. Não obstante a péssima repercussão internacional causada pela chacina da Candelária, outros facínoras perpetraram outras duas atrocidades semelhantes.

O massacre de Haximu, genocídio de indígenas yanomamis por garimpeiros —ou traficantes— de ouro, no estado de Roraima, resultando na morte de 16 pessoas e, entre um e outro acontecimento, o assassinato de 21 moradores da favela de Vigário Geral, esta na zona norte do Rio de Janeiro, na madrugada do mês de agosto, sob as ordens de um grupo de 36 exterminadores, fortemente armados e encapuzados, que invadiram, quebraram portas e arrombaram barracos, executando todos a sangue frio.

Lembrando tudo isso, um livro me passou pela memória, objeto de leituras antigas: "Mães de Acari: Uma História de Luta Contra a Impunidade", escrito pelo jornalista Carlos Nobre Cruz, já morto.

Na obra-reportagem, publicada em 1994, o jornalista denuncia o desaparecimento de 11 jovens, sete deles menores, retirados de um sítio em Magé, no Rio de Janeiro, no ano de 1990, por um grupo de supostos policiais, que estavam à procura de joias e dinheiro.

Carlos Nobre Cruz no livro narra também a saga das mães e parentes dos garotos desaparecidos em busca, não só por justiça, mas pelo direito de enterrar seus filhos, que jamais foram encontrados.

Essas mães se tornaram uma espécie de versão brasileira das Mães da Praça de Maio, associação argentina de mães que tiveram seus filhos assassinados ou desaparecidos pelo terrorismo estatal implantado na ditadura militar argentina. Trata-se do primeiro grande grupo que luta efetivamente contra violações de direitos humanos, com evidentes reflexos no Brasil e na América Latina.

Seja na Candelária, em Vigário Geral ou em qualquer outra região, comunidade, favela carioca ou brasileira, cidadãos, adultos, jovens e crianças —todos sempre pretos e pobres— são vítimas brutais de assassinatos e desaparecimentos, de maneira covarde e desumana, servindo para ilustrar o profundo processo de divisão social, onde há seleto grupo que tem tudo, desde a salvaguarda do privilégio a toda e qualquer proteção, enquanto há outro que não tem nada, certamente nem o direito de viver.

Após três décadas, não há como negar o quanto tais fatos ainda nos incomodam e violentam.

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