Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

'Louças de Família' é um livro que se lê para respirar e abrir os olhos

Através da morte, autora escreve sobre o descarte da vida de uma geração

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Entrei e saí da leitura de "Louças de Família" (Autêntica), de Eliane Marques, completamente mexido e impactado. Mexido pela história contundente e feroz que ela nos faz atravessar; impactado pela linguagem cortante –algo que nos faz lembrar, pelo experimentalismo e a estrutura não tradicional da construção narrativa, a Guimarães Rosa, não só de "Sagarana", sim, e propriamente, de "Grande Sertão: Veredas".

Eliane Marques proporciona uma viagem profunda de uma história, como disse, que nos atravessa enquanto geração. Costurando teias intrincadas com seus personagens energizados pela dor e violência —o caso de tia Eluma (anagrama de "mula", pela serventia e solidão?)—, nos faz pensar e refletir passado e presente, ancestralidade e pertencimento, mazelas e privilégios de corpos brancos que dominam o Brasil há séculos.

A história é uma vivência de abusos e ofensas naturalizados por uma sociedade que se desumaniza, sem disfarces, e se forja pelo racismo e a desigualdade.

Marques escreveu um livro sobre tristezas, no plural, é verdade, porque elas são muitas e têm fundas raízes, presas ao patriarcado e ao colonialismo. Tudo começa pela morte de tia Eluma, uma matriarca de vida enegrecida e talhada, como empregada doméstica, para a servidão humana sob o jugo da tirania da casa-grande. É um corpo negro e pobre, que mesmo na hora da morte não tem onde cair morto para o verdadeiro descanso eterno.

A personagem morre, mas não tem como pagar o enterro e as flores, a não ser recorrendo a outra forma de humilhação: o pedido de ajuda.

Como ponto de partida, o livro se abre a um emaranhado onde sentimentos se aterram, de forma tormentosa, como um desgosto do viver. O título da obra, por si só —onde a palavra "louças" serve à simetria do que é frágil e descartável— remonta a uma herança subjetiva, partida ou trincada, em diversos pontos, entre o querer e o despossuir.

"Na maior parte do tempo, eu nem quero viver, não me sinto pertencente a esta terra, assim como não me sinto pertencente a nada no meu entorno ou fora dele", escreve a autora pela boca da narradora da história.

Capa do livro 'Louças de Família'
Capa do livro 'Louças de Família' - Reprodução

Esses atravessamentos, que se desdobram "no terreno avermelhado pelo sangue das vacas", cortam o romance o tempo todo, como uma matriz onde se esvai emoções e anseios.

Norteada por esses feixes de memória e angústia, a trama se desenrola, urdida por uma precisão de linguagem que é o espelho a refletir um país inverso de tudo, mas traçado, desde o seu início, pela sanha dos que mandam e dos que obedecem.

Não é só isso. Eliane Marques impõe outros aprofundamentos, outras visagens que a morte de alguém como tia Eluma faz enxergar: a herança dos despossuídos da sorte e da fortuna, a nudez que a servidão sob fortes processos de desumanização proporciona pelos destroços.

Este também é um livro confessional –mas somos todos, leitores e leitoras, sujeitos negros e negras, que nos identificamos nessa saga literária.

Há uma engrenagem em "Louças de Família" que não nos permite piscar diante do seu texto –a tela branca do papel chamuscado de letras pretas tem a dimensão cinematográfica de vinte e quatro quadros por segundos.

A leitura nos retém –propriamente dito, não entretém. Não é um divertimento, não é uma ilusão –é, quando muito, uma imersão a um universo tão distante e tão próximo dos nossos sentidos, que nos toca a imaginação e nos arranha a pele.

Este é um livro escrito para nos assustar, enquanto leitores. Ao seu término, nos habita e nos apossa, a azucrinar com seus estridentes guizos, a grei fantasmagórica de emoções que nos faz caminhar acima do chão.

Também não é um livro para discursos, pois não propõe moral –ele, em tese, humaniza seus atores. Espécie griot atemporal e sensitivo, no sentido moderno do termo e suas conexões, faz a junção de memória e grito, quando deixa o corpo falar no lugar da língua.

Neste aspecto, o presente e o contemporâneo teimam em ser passado. A autora, com isso, talvez consiga respirar e abrir os olhos.

Erramos: o texto foi alterado

 

Versão inicial deste artigo dizia erroneamente que "Louças de Família" foi publicado pela editora Todavia. O livro é da editora Autêntica.

 

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