Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Horário político anuncia tempestades incapazes de dar fim à seca de 4 anos

Candidatos ainda olham para as câmeras para falar com o povo como se não tivessem medo da memória

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Após o longo dia de trabalho ou de escola, antes da internet mudar os caminhos de acesso ao entretenimento, a anestesiante programação de TV era o copo d’água para gargantas secas. "Quero assistir algo que não me faça pensar em nada", comum frase que a consciência adota dos confins da cabeça quente como apelo final, antes de deitar para acordar minutos depois e recomeçar mais um dia sem fim.

Horário eleitoral gratuito no rádio e na televisão - Folhapress

Abruptamente, um corte parte a tela e anuncia o fim do sossego. Obrigatório, o horário eleitoral gratuito, ou "horário político", inicia-se e, novamente, as muitas casas apertadas são obrigadas a receber em seus poucos cômodos sujeitos incômodos. Gente que não cabe de tão vazia ou se finge de cheia. Com a ajuda de celulares, basta desligar a televisão e ir em busca de conteúdos menos frustrantes. Houve certa época, porém, em que tal opção não existia.

Entre os cultos da autodeclarada cultura erudita, estudiosos de comunicação e ciências sociais ainda falam em massas que não possuem consciência política e, por esta razão, desprezam —ou não entendem, por ignorância— conteúdos do tipo. Vivem de teoria estes. Já aqueles benzidos e batizados pelas mãos calejadas da prática, a aversão às propagandas de cunho eleitoral nasce, também, como resposta ao vício que a "elite pensante" do país mantém em sua intimidade não tão privada assim. O de subestimar a capacidade de percepção do povo que sofre o mundo todos os dias.

Horário político, debate político, e a retórica manjada, sim, na favela, nas vielas, nos botecos e onde mais estiverem as pernas que da vida já tomaram várias rasteiras. Explicar economia para o povo é difícil, dizem por aí. Falar do povo já é mais fácil, demonstram outros. Porém, nada se compara a discursar pelo povo. Três minutos para conversar com a senhora, que é empregada doméstica e sabe do que eu estou falando; você, trabalhador, sente na pele o que estou dizendo; andei pelas periferias; conversei com os marginais; comi pastel; portei Juliet; vi empreendedores de verdade!

Em três minutos, falam por trinta e três milhões de bocas caladas e famintas.

Domésticas entendem. Porteiros e desempregados entendem. Jovens obrigados a rifar os melhores anos de suas vidas para sustentar seus velhos também. O saber vem do concreto. Abrir a dispensa e encontrar farelo. Olhar para as contas e calcular qual alimento cortar para ter condições de ensaboar a moleira fervida na preocupação ou manter a geladeira ligada, ainda que vazia.

O que deseja a população que mais sofreu ao longo de quatro anos senão tempestades que lavem? O voto tem por função mudar o clima, virar o tempo, e há riscos, sem dúvidas. Não é preciso vestir paletó e investir o léxico numa quase cômica, mas na verdade entrópica, fala aos mais entendidos para explicar a chuva à favela —que também sofre quando ela vem fugida dos desmatamentos ao norte. Nem economia, pois dinheiro contado é o que determina a matemática dos fins e começos de mês. A moeda, o extinto troco de bala, o imortal empréstimo, tudo isso conta. Recomendar-se-ia guardar explicações complexas para aqueles que se recusam a multiplicar um pão sequer.

O cenário político atual não é novo para o povo dos distantes centros. Sabe, ele, que terá de escolher. Cada canto, em sua universalidade, faz da política a experiência empírica do que significa negociar aquilo que não se tem para ter algo —nem que seja uma dívida. É tornar público um sofrimento reservado, escondido na vergonha de ver escorrer, pelo suor e não pelas gotas de um bom pé-d’água, a dignidade que pai e mãe, avô e avó, deixaram de herança.

Os quatro anos serão encerrados e não há horário político que consiga escondê-los. Falta segundos no relógio dos desesperados que sabem, tanto quanto aqueles que são a origem do seu pavor, que sua hora vai chegar.

Olhe para a câmera, dê seu boa noite, peça para falar com o trabalhador, com a desempregada e tente convencê-los de que seu medo não é, na verdade, da memória deles. Aquela que vem com a tempestade.

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