Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

A grande dor de João Silvério Trevisan e seus mistérios

Em 'Meu Irmão, Eu Mesmo', escritor relata infecção por HIV e câncer de irmão mais novo

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Nunca me convenceu a aleatoriedade. O acaso tido como uma manifestação involuntária da vida limitada à coincidência. Acredito, por outro prisma, na inevitável conexão entre pessoas que pode ocorrer, sim, de maneiras inesperadas, mas que pouco importa o formato. O que vale é a identificação que promove e nos faz comuns.

Imaginaria o escritor que, ao conceber uma obra voltada para suas memórias íntimas, vivas, tão vivas que faz do livro algo de carne e osso –dotado do peso de um corpo segurado pelas mãos do leitor—, estaria dialogando com tantas pessoas espalhadas pelo mundo? Uma delas, inclusive, distante no tempo e espaço, acolhida há três décadas pela região conhecida por Ermelino Matarazzo, na periferia de São Paulo. Mistério. O não saber imune à angústia da ausência de resposta. O não saber que se conforta na busca por resposta.

Entre improváveis encontros, deparei com o forte relato memorialístico vindo de alguém que acredita na capacidade nossa de superar coincidências e atingir um nível coletivo de sincronicidade.

A sincronicidade do Grupo Corpo - Reinaldo Canato - 16.dez.15/UOL

No dia 13 de maio deste ano, João Silvério Trevisan lançou "Meu Irmão, Eu Mesmo", segundo livro que integra uma trilogia iniciada com "Pai, Pai". O escritor, jornalista, dramaturgo e tantos outros títulos voltados para aqueles e aquelas com maestria no conduzir de palavras e sentidos, abriu as janelas de sua casa e recebeu a quem quisesse entrar para conhecer seu irmão mais novo, Cláudio, e a história que os dois partilharam ao longo da vida. A relação, descrita em detalhes, eleva o amor a um nível físico e a leitura a um tão físico quanto, passando da palavra à boca e ao peito o amarrar e pesar dos que sentem —sentem muito— algo que nos é comum: a dor. A grande dor.

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O escritor João Silvério Trevisan - Marcus Leoni - 13.set.18/Folhapress

Da revelação de sua homossexualidade à luta pela sobrevivência no período em que o surto de Aids em terras brasileiras era sentença de morte carnal e social, João narra a relação de companheirismo com Cláudio, os desafios da convivência com HIV, a luta para manter seu ofício de escritor e a tristeza de ver o irmão adoecer por conta de um câncer. No âmago da família, as células impacientes de Cláudio resultaram em outras formas de conexão, amor, melancolia e entendimento sobre os mistérios da vida. Sem respostas, mas com muita caminhada até elas.

Quando terminei a leitura, estava sozinho, no quintal de casa. Por alguns minutos fiquei estático, absorvendo as últimas palavras de João. Não foram escritas por acaso, não estavam diante de mim por condições aleatórias da existência. Também não era obra do que chamam de destino. Era obra de alguém capaz de fazer com que olhemos para cantos que ninguém vê. Nesse instante, estive com o autor. Dois irmãos mais velhos, juntos pelo silêncio de quem sente —sente muito.

Como se fôssemos vizinhos, parede com parede, consegui ouvir João e sua família. A falsa separação de concreto se fez incapaz de impedir que a dor transpusesse as tantas diferenças que nos marcam. Das cartas escritas a Cláudio ao poema sobre o câncer lido em uma reunião de Natal, fez-se a gramática do choro, a linguagem soluçada que revelou diferentes formas e regras para a semântica do sofrimento.

É um texto de carne e osso. Pesa e convida a viver a intimidade do outro, lembrando o quão humanos somos a ponto de nos sentirmos indignos ou envergonhados por olharmos para dentro de sua casa, buscando em seus incômodos o que em nós se assemelha a eles.

Conheci Trevisan pessoalmente. Num abraço, colocamos os corações parede com parede, de carne e osso, numa sincronia misteriosa, promovida pela escrita. Prevaleceu, em seguida, o silêncio dos que sentem —sentem muito.

Não sou dado às respostas aleatórias que fingem ser objetivas. Prefiro as perguntas que levam aos mistérios e descobri que João também.

Em "Meu Irmão, Eu Mesmo", ele pergunta: "Ou será que todos ficamos revoltados, impreterivelmente, quando vemos a morte se aproximar?". Respondi com outra: ou será que todos ficamos revoltados, impreterivelmente, quando vemos a vida se distanciar?

'Meu Irmão, Eu Mesmo', livro de João Silvério Trevisan lançado em maio de 2023
'Meu Irmão, Eu Mesmo', livro de João Silvério Trevisan lançado em maio de 2023 - Reprodução

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