Na primeira vez que vi uma pessoa se pendurar em um caminhão de lixo buscando algo para comer, eu estava confortavelmente sentada no meu carro, recém-saída de um restaurante bacana no Itaim. O choque que a cena me causou é irrelevante e desprezível diante do sofrimento daquele senhor que vasculhava no escuro, enquanto os lixeiros consternados jogavam os sacos por sobre sua cabeça, sob o olhar ansioso de uma mulher e duas crianças bem pequenas.
Em nossa sociedade, essa família faz parte do grupo assimilado à vida nua como conceituou Giorgio Agamben em "Homo Sacer: O poder soberano e a vida nua". São aqueles que não têm estatuto de sujeito, cuja vida poderia ser disposta sem provocar o trabalho de luto nos demais.
As gestações que emergem desse (não) lugar social revelam um paradoxo. Sua majestade o bebê, puro e inocente, surge onde as subjetividades não são devidamente reconhecidas. É só nesse momento que a sociedade se mobiliza, tentando extrair a pérola do limbo social que essa mesma sociedade produziu.
O bebê alojado no útero do estorvo será "salvo" por assistentes sociais, psicólogos e juízes ciosos de seu bem-estar. O consumo de drogas é uma das grandes justificativas para a perda do poder familiar entre pobres, enquanto os ricos se entopem de antidepressivos, ansiolíticos, álcool, drogas ilícitas e recreativas por não suportarem "o estresse da vida moderna". Agora, tente imaginar que droga amenizaria a dor de viver com a sua família na rua.
Sob a alegação de que não há boas condições para o desenvolvimento da criança, ela é tirada da família (geralmente da mãe). Não se cogita seriamente ofertar melhores condições para as famílias nas quais vivem, tornando ainda mais despossuídos mães e pais, de quem tudo já foi tirado.
Aí vem o paradoxo mencionado: o "salvamento" da criança se revela um circuito frequentemente fracassado –grande parte delas retorna para a miséria. A operação encobre mais uma forma de extermínio dos excluídos dentre tantas outras denunciadas. Por mais bem intencionada que seja, essa política resulta inócua ou fatal, com raras exceções.
Fica evidente o desejo obsceno de dizimar a miséria eliminando o miserável. Crença neoliberal de que, inibindo a reprodução dos pobres e promovendo a dos ricos, diminuiríamos a pobreza e aumentaríamos a riqueza. Como se não se tratasse de condições intrínsecas à estrutura social desigual e injusta, mas da simples reprodução de corpos (corpos ricos ou pobres).
A maternidade é um luxo que só começa a valer a partir da classe média, casada, branca, cis e heterossexual. Fora desse espectro, toda a reprodução é tida como estorvo (proliferação de pobres e negros), psicopatológica (desqualificação da parentalidade de casais LGBTQIA+) ou inconveniente (suposta incapacidade de mães solteiras). O privilégio da parentalidade é ultrarrestrito e expõe a mentalidade tacanha que rege nossa sociedade. Quando o governo fura o teto fiscal, ao invés de cortar seus próprios gastos, para "salvar" o pobre –leia-se para salvar o mandato de Bolsonaro–, ele deixa em seu rastro a inflação que aumentará a pobreza que diz solucionar.
Se, por um segundo, pudéssemos ver no cidadão maltrapilho e intoxicado a criança cuja pobreza se perpetuou geracionalmente, talvez usássemos toda e qualquer oportunidade para lutar junto a ele. Afinal, ainda reservamos às crianças alguma sensibilidade.
O que aguardamos para sair às ruas pelas famílias esfomeadas? Uma coisa é certa, cálculo político e fome não compartilham da mesma temporalidade.
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