"Acho que te conheço de algum lugar."
"Você também não me é estranha."
"Ah! Lembrei! Nos conhecemos em Auschwitz."
Piada impensável fora do seu contexto e que está entre os diálogos do filme "Um brinde à vida" (2014), no qual três mulheres sobreviventes de Auschwitz se reúnem em um balneário francês, 15 anos depois de terem sido libertadas. Elas riem alto, para escândalo de quem as escuta e não tem como imaginar a dimensão de suas falas.
A possibilidade de fazer piada com o horror revela o trabalho psíquico envolvido na elaboração simbólica e o deslocamento afetivo da cena vivida. Trabalho que uma análise pretende fazer, seja pela via do humor, seja pelas outras formas de simbolização de que dispomos —volto a indicar o "Chiste e sua relação com o inconsciente" (Freud, 1905).
Recomendo fortemente também "Sísifo" (Teatro Sérgio Cardoso, curta temporada), peça na qual Gregório Duvivier explora algumas das facetas de sua conhecida genialidade. Não que já não a conhecêssemos em esquetes humorísticos nos já consagrados Porta do Fundos ou Greg News (HBO) ou mesmo em papéis premiados no cinema e no teatro. Em todas as incursões artísticas, sua capacidade de interpretar, imitar, produzir, escrever e dirigir é assombrosa.
Em Sísifo, no entanto, temos um ator, maduro, ainda que jovem, sustentando um monólogo com 1 hora e meia, cujo texto impecável de Duvivier e Vinícius Calderoni recebe encenação à altura (direção de Calderoni e cenografia de André Cortez). As denúncias dos descalabros da atualidade, que poderiam cair no lugar-comum, nos pegam desarmados diante do humor, ampliando o golpe de consciência. Questões existenciais e questões conjunturais são costuradas à fina ironia sobre a condição humana. Lirismo, humor e crítica ácida se sucedem com ritmo e elegância.
Falamos muito sobre como a arte nos salva da miséria humana, mas nem sempre damos ao humor seu devido lugar. Pensemos o poder de síntese e de conscientização das tirinhas de Laerte ao longo desse tenebroso período no qual conjugamos: ataque sistemático à democracia perpetrado pelo próprio governo, genocídio de povos nativos e pretos, pandemia, retrocesso ambiental, guerra mundial e derrocada econômica. Como sobreviver sem essa catarse/reflexão?
Daniel Kupermann, psicanalista que se dedica à questão do humor e autor de artigos e livros sobre o tema, nos lembra da resposta que Freud deu à Gestapo quando teve que assinar um documento declarando que não havia sofrido maus-tratos para poder ser liberado durante a ocupação nazista. De próprio punho ele acrescentou à assinatura: "posso recomendar altamente a Gestapo a todos". Enfrentou incalculável risco para manter-se à altura do desejo de contradizer seus algozes.
O risco está dado de saída para todo aquele que ousar fazer do humor a ferramenta a partir da qual a opressão, o ridículo de nossa existência, a finitude e o desamparo são desmascarados. Mas existe, como vimos recentemente na polêmica Jada-Will-Rock, o perigo do humor que não se presta a iluminar as consciências e cujo mal-estar só serve para enaltecer a figura de quem o faz, diminuindo quem costuma ser subalternizado. Fatos como esse não devem eclipsar sua importância civilizatória.
Na piada que abre este texto, três amigas estão sob o sol francês celebrando com seu humor ácido o fato de haver vida após Auschwitz. O impensável pôde ser transcrito na piada, o riso revelando a alegria de viver, muito além de sobreviver. O humor não nega a morte —e o desamparo—, ao contrário, ele é sua própria afirmação sem que nos rendamos a ela antes do tempo.
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