Vladimir Safatle

Professor de filosofia da USP, autor de “O Circuito dos Afetos: Corpos Políticos, Desamparo e o Fim do Indivíduo”.

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O corpo da música

É possível que uma sociedade realmente descontrolada seja a real condição no momento para o Brasil abrir caminhos

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Ilustração Vladimir Safatle
Marcelo Cipis/Folhapress

Uma das mais importantes obras da literatura pianística da segunda metade do século 20 acaba de receber uma nova versão. "Ligeti: Complete Études" é a mais recente gravação dos três livros de estudos para piano do compositor húngaro György Ligeti, morto em 2006.

Compostas entre 1985 e 2001, as peças perpassam assim toda a última fase deste que foi, certamente, um dos maiores compositores da segunda metade do século 20.

Interpretada pelo jovem pianista japonês Kei Takumi, a gravação demonstra uma relação à obra capaz de aliar precisão de dedilhado a uma compreensão clara das múltiplas tonalidades expressivas que este conjunto de 18 peças exige.

Pois com suas composições que demandam tanto o limite do esforço físico do pianista quanto a sutileza de toques, diferenças de intensidade e clareza de passagens e de transições, os estudos para piano de Ligeti podem se transformar facilmente em uma mera exposição de tour de force.

No entanto, tanto a brutalidade polirrítmica de um estudo como "Désordre" quanto a leveza melancólica de "Arc-en-ciel" são igualmente respeitadas na interpretação de Takumi, o que demonstra um intérprete capaz de saber como se mover no interior das escalas afetivas exigidas pela obra.

De toda forma, a ocasião do lançamento dessa nova gravação é um bom momento para pensarmos o destino da literatura musical para piano nas últimas décadas, assim como os seus desafios.

E talvez uma das múltiplas formas de abordar tal questão seja lembrando de uma afirmação do próprio Ligeti: "Para uma peça ser bem resolvida para o piano, conceitos táteis são quase tão importantes quanto conceitos acústicos. [...] Um giro melódico ou uma figura de acompanhamento chopinesco não é apenas ouvido, mas é também sentido como uma forma tátil, como a sucessão de excertos musculares. Uma peça de piano bem formada produz prazer físico".

De fato, há uma fisicalidade, uma gestualidade fundamental neste gênero musical chamado de "estudos para piano". Gênero que ganhará estatuto de obra (e deixará de ser um mero conjunto de exercícios) desde o romantismo de Chopin. O que faz com que toda composição recente de estudos para piano acabe por tentar responder uma questão maior, a saber: "o que significa construir gestos hoje?". Quais são nossos gestos, qual é o tempo dos nossos gestos?

Pois notemos que, se uma peça pode produzir prazer físico, é porque ela esculpe a dinâmica dos corpos, ela produz um certo esquema corporal que ganha realidade através da repetição de movimentos.

Essa inscrição da corporeidade em um processo de produção de sons é uma forma importante de desvelamento da existência de uma certa expressão corporal resultante de uma verdadeira "disciplina de artista", ligada a um trabalho sobre si que faz do corpo o campo de desdobramento daquilo que Ligeti chama de "conceitos táteis".

Que o piano seja o espaço privilegiado para a produção de tal corporeidade, eis algo que não deveria nos surpreender. Afinal, nenhum outro instrumento se vinculou tão claramente à formação sentimental da burguesia em ascensão quanto o piano.

O piano não foi apenas um instrumento musical, mas um espaço privilegiado de formação da sensibilidade burguesa e de sua interioridade psicológica. Ele não foi apenas o instrumento privilegiado de educação musical, mas o meio fundamental de educação sentimental. Ele foi, na verdade, o primeiro divã da sociedade burguesa.

Mas como todo bom divã, o que aparecerá diante do piano ultrapassa em muito os anseios de controle da sensibilidade burguesa.

Lembremos como não se aprende a tocar piano sem aprender a controlar o peso dos dedos, a modelar as mãos, a abrir e fechar os braços a fim de construir uma dinâmica de intensidades e velocidades.

Nesse sentido, a técnica pianística impõe claramente a construção de um corpo expressivo a partir da internalização de um sistema complexo de tempos, de gestos e de movimentos. Ela demonstra, de maneira exemplar, como a personalização da expressão é totalmente dependente da consciência de ter um corpo.

De certa forma, a questão de Ligeti em seus "Estudos" é: "que corpo é o nosso, qual sua temporalidade, suas dissociações e modos de síntese, como ele habita multiplicidades?". Há de se ter isso em mente diante de sua obra.

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