Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"

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Wilson Gomes

As vaquinhas improdutivas de Zema

Governador ilustrou o sentimento do Norte e Nordeste de que só Lula os defende

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Se Romeu Zema queria puxar a brasa para a sardinha de Lula e colocar mais obstáculos eleitorais no caminho da direita, além de projetar uma luz ruim sobre o consórcio de estados do Sul e do Sudeste, foi muito exitoso na entrevista que deu a Monica Gugliano e Andreza Matais, de O Estado de S. Paulo.

O curioso da história é que ele se vende como um sujeito que reconhece que ser eficaz na gestão e na articulação política pode não bastar sem uma estratégia de comunicação bem planejada e muito bem executada. Chega a exagerar na ponderação entre entregas políticas e comunicação no cálculo do sucesso eleitoral, como quando diz que Bolsonaro teve a eleição passada "totalmente na mão", tendo-a perdido apenas no discurso, na retórica, na polêmica. O governo Bolsonaro teria sido bom, nota 8, mas uma comunicação presidencial ruim pôs tudo a perder.

Do mesmo modo, o seu juízo acerca da esquerda é sobre um fracasso no desenvolvimento, compensado por retumbante sucesso na propaganda. Na prática, a esquerda nada tem, segundo ele, mas na comunicação ela rouba a admiração do governador, que não poupa expressões como "canto da sereia", "discurso sedutor" e "lavagem mental".

Se entendesse mesmo de comunicação estratégica, o governador de Minas talvez devesse ter sido mais, digamos, "mineiro", isto é, mais conforme o clichê do político que diz menos do que pensa, considera cautelosamente o efeito das suas palavras e, sobretudo, cultiva uma estudada modéstia e moderação.

A ilustração de Ariel Severino nos mostra uma figura de um homem de boca aberta gritando que olha para um campo cultivado e da as costas para um muro que separa o campo de terras férteis das terras áridas. Pelo torso do homem passa uma linha trazejada que delimita o seu corpo bem no meio e, também o campo das terras áridas. O sujeito veste na cabeça uma tapadeira para cavalo que o impede de visualizar aos lados.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 9 de agosto de 2023 - Folhapress

Se tivesse ponderado melhor, talvez tivesse compreendido que a sentença "já decidimos que além do protagonismo econômico, que temos, nós queremos o protagonismo político", em que contrapõe o Sul/Sudeste ao Norte/Nordeste, é um presente dos sonhos para Lula. Com essa frase, Zema forneceu a ilustração desejada para o sentimento nordestino, nortista e dos pobres do país de que só Lula os defende, só ele tem de fato uma agenda para a diminuição da desigualdade regional e que só Lula e a esquerda fizeram uma opção preferencial pelos pobres.

"Além do protagonismo econômico, queremos o protagonismo político" é como expedir um atestado de que políticos como Zema só pensam nos que estão por cima e em aumentar o poder dos que já o têm. Nos ouvidos dos afetados pela desigualdade, o duplo protagonismo reivindicado por Zema é só uma versão pomposa do refrão mais sincero de Igor Kannário: "É nós, depois de nós é nós de novo".

Não imagino Tancredo Neves sintetizando e simplificando o Norte e o Nordeste brasileiros na noção de "vaquinhas pouco produtivas". Mas Romeu Zema o fez. Uma contribuição monumental para reforçar a convicção, na maior parte do país, de que que "esses políticos lá de baixo" conhecem o resto do Brasil não pelos livros de história, mas pelas histórias que lhes contam seus preconceitos e clichês, sua ignorância e sua incapacidade de entender e reconhecer as gigantescas diferenças internas das outras regiões.

Depois se esforçam tanto para entender a teimosia do Nordeste, que não se rendeu ao antipetismo nem ao bolsonarismo quando a maior parte da população do país fez uma virada eleitoral à direita populista. Transformaram em enigma o que é claro feito o dia. Há de haver várias razões para que a região tenha resistido, mas certamente é preciso considerar como variável importante a sensação altamente disseminada de que o sentimento antinordestino era parte fundamental do antipetismo.

Pensem comigo: qual a racionalidade de mudar eleitoralmente para um governo de duas faces, liberal-darwinista e ultraconservador, como o oferecido pelo antipetismo, ante a alternativa petista do reconhecimento do problema da desigualdade regional como uma questão central para o país, além de considerar as especificidades do Norte e do Nordeste? Pelo menos o PT sempre soube que havia mais Brasil a partir do vale do Jequitinhonha e ao norte de Campos, enquanto o discurso dominante vê apenas vaquinhas pouco produtivas, um desperdício de pasto e ração.

Quando as pessoas desconfiam que convicções como as candidamente vocalizadas por Zema —de que a desigualdade regional é um problema dos que ficaram para trás, não de todo o país; de que a pobreza é um problema dos pobres, não um problema nacional— são as ideias que movem os outros projetos de poder político, cessa o enigma do voto nordestino e nortista das últimas eleições.

Houve racionalidade quando se considerou que, sem Lula, quem já é protagonista de tudo quer ainda se tornar protagonista do resto. Zema está aí para ajudar os eleitores a se lembrar disso. Foi um belo serviço prestado.

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