Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

As nenúfares da pequena ilha Naoshima desorientam e encantam no Japão

Nesse solene e onírico jardim podemos nos sentir de fato abraçados pela arte

Tudo estava em seu lugar naquele jardim. As peônias florescendo ao lado de deslumbrantes hibiscos. Tímidas tulipas brotando no meio de buquês de dálias. E um chorão ao fundo deixando nacos de sol bater nas azaleias brancas dava a ilusão de que suas pétalas eram mesmo lágrimas brilhantes. A única coisa que não estava no lugar era o próprio jardim.

Ilustração de Maíra Mendes para coluna de Zeca Camargo sobre a ilha de Naoshima
Maíra Mendes

Ele deveria estar em Giverny, na França, onde o grande pintor francês Claude Monet (1840-1926) criou não apenas um refúgio para o fim da sua vida, mas um cenário que seria a inspiração para sua monumental obra tardia. Esse jardim encantador, porém, estava do outro lado do mundo, numa pequeniníssima ilha no Japão chamada Naoshima.

Quando viajamos, é comum nos encontrarmos em paisagens naturais ou urbanas que dão uma ligeira sensação de deslocamento. Quem já viajou por Portugal, por exemplo, pode ter a impressão de que já viu boa parte daquelas fachadas antigas cá mesmo em Ouro Preto ou Salvador —que por sua vez são também as cidades de que lembramos numa visita a Goa, na Índia. 

Os mosaicos romanos mais lindos que já vi não encontrei em Nápoles ou qualquer outra cidade da Itália, mas no Museu Nacional do Bardo, em Túnis, capital da Tunísia (África). E as próprias portas famosas dessa cidade dialogam diretamente com as que visitei recentemente em Mascate, Omã.

Esses breves e deliciosos momentos de desorientação servem para nos lembrar de como nossa cultura é fluida e transita com mais liberdade do que imaginamos por nosso pequeno planeta. São bem-vindos e divertidos. Mas aquele jardim de Monet ali no Japão me parecia perturbador demais. O que ele estava fazendo ali?

Para entender melhor, primeiro é preciso explorar Naoshima, que é um grande museu a céu aberto —e fechado. Toda a ilha é um grande complexo de arte, fruto da generosidade de um milionário japonês, Soichiro Fukutake, que comanda um dos maiores grupos editoriais do país: Benesse.

Ali você encontra dois hotéis projetados por Tadao Ando. Um deles, no topo de uma colina, com exclusivíssimos seis quartos, é uma obra de arte em si. Ateliês e residências para artistas em formação. E vários museus espalhados —um deles, o Chichu, onde você encontra, logo na entrada, justamente esta réplica do jardim de Monet em Giverny.

A ideia era criar um ambiente perfeito para quem vai até lá ver as famosas “Nymphéas” do pintor, seus nenúfares tão queridos e transcendentais. Naoshima é um dos poucos lugares do mundo —o Museu da Orangerie, em Paris, é certamente o mais famoso deles— onde você pode contemplar essas enormes telas, marcos maiores do impressionismo, num ambiente criado especialmente para elas. E que experiência é o Chichu!

"Les Nympheas", obra de Claude Monet,  exposta no Museu da Orangerie, em Paris
"Les Nympheas", obra de Claude Monet, exposta no Museu da Orangerie, em Paris - Jacques Demarthon - 2.mai.2006/AFP

Do jardim, você desce por rampas de concreto até as salas subterrâneas —tudo desenhado também por Ando— que abrigam apenas outros dois artistas além de Monet: o conceitual Walter de Maria e o gênio das luzes James Turrell. E é incrível como, contra as expectativas, trabalhos tão diferentes conversam tão bem entre si.

A atmosfera é quase solene, mas também onírica, como se o sonho de circular entre as obras de arte de Naoshima (as grandes abóboras de Yayoi Kusama se revezam pelos jardins do hotel com as formas coloridas de Nikki de Saint Phalle) não fosse suficiente para nos transportar para um lugar mágico. E, quando subimos de volta à luz do dia, reencontrar aquelas flores da réplica de Giverny já não é tão estranho assim.

Pois ali em Naoshima podemos nos sentir de fato abraçados pela arte. Inhotim, nosso precioso acervo em Minas Gerais, chega perto disso. Mas, talvez porque está próximo demais (felizmente podemos visitá-lo facilmente), não atingimos lá o distanciamento necessário para nos sentirmos de fato em um outro plano. Onde peônias, hibiscos, azaleias, rosas miúdas, dálias, tulipas e nenúfares não estão confinados apenas a um jardim, mas por onde a gente queira viajar na imaginação.

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