Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

O homem sem horizontes

A sombra funesta dele faz de todos nós, brasileiros, turistas indesejados

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Consigo ver a praça Castro Alves da janela do hotel onde escrevo hoje em Salvador. Se não a própria figura do poeta, ao menos sua sombra projetada pelo sol que despeja seu calor para mais um dia de verão na Bahia.

Se dobrar minha imaginação à esquerda, consigo ver o Cinema Glauber Rocha e me lembrar do tempo em que lá se podia ver filmes. Dali poderia descer a ladeira da Montanha, repaginada de cores, mas não livre dos perigos, e chegar à Cidade Baixa. Mas minha mente tem outros planos.

Quer conectar minha vista da janela do Fera Palace à de um hotel que certa vez fiquei em Praga. De seu nome, só me lembro que começava com um “U” sozinho, como dezenas de outros da capital tcheca. Só esse, no entanto, tinha uma vista da ponte Carlos como a do meu quarto no terceiro andar...

Como o Fera, minha hospedagem na terra de Kafka era um daqueles prédios construídos sobre uma esquina pontuda, que projeta uma elegante estrutura dentro de um ângulo de menos de 45 graus. Sorte de quem se hospeda numa acomodação bem nesse vértice!

Para além da praça Castro Alves, o mar. E dali fui para outros pontos de fuga. Lembrei-me primeiro dos telhados que via da janela do Gran Hotel Continental Siena e que desenhavam um tapete de terracota capaz de nos conduzir aos campos da Toscana, na Itália.

Segui pela vastidão enquadrada pelos batentes do Amangiri, em Utah (EUA), onde o maior espetáculo é a mudança de cor nos cânions ao longo do dia. E de lá para um lodge no Parque Nacional Etosha, na Namíbia, onde um dia acordei com uma girafa emoldurada pela esquadria em frente à minha cama.

Passei pelo Pacífico que via da minha escotilha quando visitava Galápagos e pela brisa que levantava a cortina do Orixás, em Flecheiras, Ceará. Mas nem sempre o horizonte que te surpreende numa janela é obra da natureza.

Tenho na memória uma imagem linda de um amanhecer em Sultanahmet, em Istambul, com os domos da cidade antiga cobertos de neve. E que êxtase era abrir os olhos e ver a torre de Tóquio, o vermelho e o branco se fundindo com a frenética arquitetura japonesa, quando fiquei no Tokyo Park Hotel.

Ser despertado pelo “elétrico” freando da descida da Alfama em uma manhã no Heritage Liberdade, em Lisboa? Que prazer! E digo o mesmo de ouvir, ainda com sono, Nova York acordando comigo pela parede de vidro do Standard High Line.

Mesmo no meio da loucura de Bancoc, olhar para o exuberante jardim interno do Sukhothai, em Sala Daeng, é uma experiência transcendental. E, procurando um momento ainda mais zen de contemplação, cheguei à minha varanda do 3 Nagas, em Luang Prabang, por volta das 4h30 da manhã, conferindo os jovens monges em seus robes laranja recolhendo a comida para o dia.

O que todas essas janelas têm em comum, claro, é um horizonte. Urbano ou bucólico, não importa. É isso que nos faz explorar o mundo: a procura de novos horizontes. E por isso só posso lamentar aqueles que não têm essa ambição.

Nestes tempos de isolamento, estamos privados dessa vocação e especialmente humilhados por termos, como imagem internacional, uma figura que, ao contrário do que se espera de um líder, não consegue ver nada além de seu quintal: um homem sem horizontes.

Sua sombra funesta faz de todos nós, brasileiros, turistas indesejados, vetores potenciais de uma pandemia que o mundo tenta controlar. É como se as janelas que tanto me deslumbraram estivessem todas se fechando.

Mas de repente escuto um barulho na veneziana. Como se alguém lá debaixo tivesse jogado uma pedrinha nela. E sinto vontade de olhar de novo para fora. De esquecer aquela presença pequena e daninha e deixar, mais uma vez, o sol entrar.

E o que mais vier com ele. Como escreveu um dia o próprio Castro Alves, que hoje tanto me inspirou:

“‘Stamos em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dois é o céu? qual o oceano?...”

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