Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Ser, não estar, em Portugal

Dois anos, para mim, é tempo demais sem ir para lá

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Viajar é não estar. O turista que não entende isso sempre terá dificuldade em aceitar seu trajeto e viver plenamente esse estado de suspensão geográfica. No entanto, uma passada rápida por Lisboa, na semana passada, me fez repensar essa minha certeza.

Não ia a Portugal desde 2019, quando fui lançar a biografia que escrevi de Elza Soares, venerada tanto do lado de lá como do de cá do Atlântico. A pandemia, claro, é a grande culpada, já que sempre me gabei de conseguir, desde 2000, passar por lá ao menos duas vezes por ano.

Placa de rua  no bairro das Colônias, em Lisboa
Placa da rua de Moçambique, no bairro das Colônias, em Lisboa - Heloisa Seixas


Naquele julho de 2019, tão certo estava do meu retorno a Lisboa que cheguei a encomendar uma roupa sob medida para um dos designers lusitanos mais criativos, o Nuno Gama. Pegaria tudo em janeiro de 2020. E aí...

Dois anos, para mim, é tempo demais sem ir para lá. Nunca consegui descrever precisamente minha paixão por aquele país, aquela cultura. Mas garanto que ela é imensa. Somos, brasileiros e portugueses, infinitamente conectados por elos que às vezes são de carinho, às vezes de escárnio. Sempre de saudade.

Mas entre mim e Portugal existe algo que não consigo entender e que me faz sentir que pertenço um pouco àquele lugar. Um sentimento que desta vez transbordou em mim. E aí que está a contradição incômoda.


Quando chegamos a um destino e nos apaixonamos por ele, uma vontade de morar lá, de pertencer àquilo tudo, é quase inevitável. "Ah se eu pudesse acordar todos os dias olhando os arrozais de Ubud", pensamos em Bali. Ou: "Que sonho poder abrir a janela e ver sempre os telhados de Siena", já disse eu mesmo visitando a belíssima cidade italiana.

Mas no fundo sabemos que isso é uma ilusão. Estamos nesses lugares de passagem. Precisamos ter a consciência de que uma viagem é um escape; que estamos em trânsito; que o mais precioso é o que trazemos de volta para casa.

Mesmo em Lisboa, de onde eu tenho memórias tão maravilhosas que vão de um fado às 4h da manhã no meio da rua a um orgasmo na modesta Pensão Londres, passando por vários pratos e copos e risadas, eu nunca tinha caído nessa armadilha de achar que eu pertencesse àquele lugar.


Até a semana passada. Fui sozinho desta vez e, com exceção de um jantar na casa de amigos queridos, na adorável rua das Janelas Verdes, subi e desci aquelas ribanceiras urbanas quase que só.

E talvez essa solidão, benfazeja, tenha trazido esse desejo de pertencer mesmo à cidade. Não ser apenas um visitante, mas alguém que as calçadas de pedra recebem como um filho. Alguém para quem o sol de inverno na Alfama signifique mais que um fundo de selfie. Alguém para quem os versos de Pessoa não sejam apenas uma citação, mas a razão de estar vivo.

Estive lá, desta vez, por exatas 48 horas. Tentei aproveitar ao máximo, mas sem pressa. E fui buscar essa beleza não nos cartões-postais, mas em inusitadas cenas cotidianas.

Como o balcão do excelente Senhor Uva, onde as pessoas se sentam numa janela cortada na diagonal pela ladeira de Santo Amaro. Ou os azulejos não das mansões, mas da antiga Fábrica de Loiça de Antônio da Costa Lamego. Ou os salões escuros do Palácio do Grilo. Ou a escultura em homenagem a Almada que você esconde a última sílaba e lê apenas "alma".

Balcão do restaurante Senhor Uva, em Lisboa
Clientes no balcão do restaurante Senhor Uva, em Lisboa - Senhor Uva/Divulgação


Fiz de cada detalhes desse um fragmento da minha própria história. Inventada –mas qual não é? E quis de fato pertencer àquele lugar.

Então não foi Pessoa que escreveu: "Para viajar basta existir"? Semana passada, descendo as escadas da calçada do Duque, no Bairro Alto, eu entendi finalmente o que ele quis dizer. Pena que eu só estava de passagem.

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