Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Na Bulgária, os segredos do apartamento vermelho

Por que não se divertir um pouco com as bizarrices do período do comunismo?

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O relativamente moderno porteiro eletrônico na entrada do prédio antigo parece quase uma aberração. E o lugar que estava prestes a visitar mais ainda: no meio de sisudos "an. 9", "an. 10", "an. 11", indicando, imagino, as campainhas dos moradores, de repente você encontra uma etiqueta onde se lê: "The Red Flat".

Sófia, capital da Bulgária, é uma cidade austera, pintada com as tintas tristes de um passado idem. Mas ao tocar naquele apartamento, você já se prepara para entrar num universo um pouco mais colorido. Ainda que a cor predominante seja o vermelho.

Esse não era, devo dizer, meu objetivo principal ao viajar para esse país que poucos brasileiros escolhem como destino turístico. Mas quando descobri esse lugar num aplicativo, tive de fazer um desvio de percurso.

A ideia original era conhecer os belíssimos mosteiros e as ainda mais belas igrejas cristãs ortodoxas de lá, mas minha curiosidade de viajante inevitavelmente me levou para essa pequena cápsula do tempo. Um retrato bizarro de uma época que os próprios búlgaros talvez só consigam encarar com humor. Ou ainda, um bibelô de "ostalgie".

Zeca Camargo no Apartamento Vermelho - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


Essa palavra deliciosa, que descobri anos atrás numa exposição genial no New Museum de Nova York, se refere à saudade dos tempos da Europa comunista, juntando as palavras alemãs "ost" (leste) e "nostalgie" (nostalgia). E é a definição perfeita para uma visita ao Red Flat.

Não que a Bulgária comunista fosse uma "era de ouro", pelo contrário. Mas invertendo a história, os criadores desse espaço, que reproduz a vida cotidiana de lá nos anos 80, brinca com essa lembrança tenebrosa com a mesma leveza do delicioso filme "Adeus, Lenin!".

Zeca Camargo no Apartamento Vermelho - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


As partes ruins desse período já conhecemos. E o Red Flat parece nos propor algo diferente: por que não se divertir um pouco com as bizarrices de então?

Da apertada cozinha, onde uma folhinha de 1981 estampa paisagens gloriosas da própria Bulgária, ao ousado "quarto dos adolescentes", é impossível circular naquele espaço sem abrir um sorriso. Mesmo que seja aquele do emoji alegre com uma lágrima no olho.

Zeca Camargo no Apartamento Vermelho - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


Na discoteca da brotolândia, por exemplo, encontramos um vinil de Madonna (ou мадона) com uma capa toda escrita em búlgaro, algo que eu, fã obstinado da cantora, nunca tinha visto. Ao lado, uma "moderna" calculadora de bolso do tamanho da palma da sua mão.

Zeca Camargo no Apartamento Vermelho - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


A sóbria sala de visitas acomoda, além de poltronas para lá de desconfortáveis, uma estante de madeira com livros e revistas de 40 anos atrás que parecem vir de um tempo ainda mais distante. Além de compartimentos escondidos com bebidas alcoólicas e (ousadia!) uma garrafa de Coca-Cola!

O banheiro apertado, para toda a família, expõe produtos originais com embalagens que fariam os apaixonados por "looks retrô" terem um orgasmo. E a TV da casa passa sem parar o melhor da emissora estatal de quatro décadas atrás.

Visitei tudo com aquele risinho sem graça no rosto. Mas do que exatamente eu estava rindo? Nem toda a beleza que vi pela Bulgária consegue esconder uma nuvem carregada que paira sobre seus cidadãos.

Zeca Camargo na sala do Apartamento Vermelho, em Sófia, Bulgária
Zeca Camargo na sala do Apartamento Vermelho, em Sófia, Bulgária - Zeca Camargo/Arquivo pessoal


Explorando Sófia, descobri restaurantes incríveis, lojas criativas e pessoas fascinantes. Mas há uma tristeza inerente pelas ruas, como se justamente essa memória comunista fosse não apenas passado, mas muito presente.

Mas talvez seja justamente endereços como o Red Flat que libertam aquela gente maravilhosa desse peso da história. E permitem que a gente conheça a Bulgária com um olhar generoso —que é exatamente o que vamos fazer da próxima vez que nos encontrarmos por aqui.

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