Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

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Zeca Camargo

Lugar imperdível, atrações inesquecíveis

A decepção com os guias feitos por inteligência artificial

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Ao entrar por aquela fachada com largas vitrines e os batentes azuis, no coração do Marais, você toma o melhor "calva" de Paris. Ah! E servido de maneira singular por Brigitte, que talvez sem nunca ter lido "Dom Casmurro", roubou de Capitu os olhos de ressaca.

Fachada do Belle Hortense, no Marais, em Paris
Fachada do Belle Hortense, no Marais, em Paris - Reprodução


Talvez existam outras tantas Brigittes pela capital francesa —e outros tantos calvados deliciosos e perfumados. Mas nenhum chega à sua taça com aquele "nonchalance", e talvez até uma certa empáfia, exibidas por Brigitte atrás do balcão do La Belle Hortense, esse lugar meio livraria meio cave na rua Vieille-du-Temple.


O Belle Hortense você encontra em mais de um guia da cidade mais visitada no mundo. Mas para ser convidado para o disputado círculo de clientes de Brigitte, você tem que ir lá para conhecê-la de perto.

Eu mesmo fui porque um dos meus irmãos, certamente procurando um lugar aberto para um último copo pelo Marais numa madrugada de meio de semana, passou por ali e resolveu entrar. E eu contei pra inúmeros amigos, citei em artigos que escrevi sobre Paris e já vi comentários de colegas viajantes que aceitaram minha sugestão e não se decepcionaram.

Interior do Belle Hortense, no Marais, em Paris
Interior do Belle Hortense, no Marais, em Paris - Reprodução


Eu acho que tem a ver com a maneira como eu falo das vezes que fui àquele lugar. Do olhar de Brigitte quando me serve essa aguardente de maçã à 1h30 da madrugada gelada de uma quarta-feira. Essas coisas não aparecem muito nos guias de viagens. Muito menos naqueles escritos por inteligência artificial.

Lembrei-me de Brigitte quando li recentemente, no The New York Times, uma reportagem sobre um novo tipo de embuste aplicado em turistas incautos: os guias feitos por inteligência artificial.

Publicado por esta mesma Folha, o excelente artigo de Seth Kugel e Stephen Hiltner foca num "novo" autor de publicações do gênero chamado Mike Steves. Que aliás é tão inventado quanto sua foto, também gerada por IA.

As "dicas" de Mike, contam eles, são as mais genéricas possíveis, recolhidas de outros textos já escritos. Na maioria das vezes, informativas, só que desprovidas de charme, vivência ou curiosidades inesperadas que nós viajantes adoramos saber.

A reportagem revela uma onda de fraudes que engana os viajantes com obviedades: os lugares são imperdíveis, todas as atrações, inesquecíveis. E ainda sabota os competentes autores de carne e osso cujos livros, infinitamente mais elaborados, custam mais caro.

Os leitores que compraram os guias genéricos, segundo o jornal, ficaram extremamente decepcionados. Também, pudera! Para que pagar por um punhado de informações desordenadas que você pode conseguir na Wikipédia?

Recentemente, comentando buscas que fiz no ChatGPT sobre turismo, dividi aqui meu espanto quanto às informações imprecisas, quando não grosseiramente erradas, que encontrei. Mas o pior, conclui, era a falta do fator humano nas respostas.

Turismo é um assunto essencialmente tutorial. Sim, queremos saber se devemos levar casacos pesados para Paris em abril, mas não é muito melhor errar na roupa e passar um pouco de frio do que perder a chance de encontrar Brigitte nas altas horas da boemia do "troisième", como é conhecida a vizinhança do Belle Hortense?

Nós que amamos essas experiências pelo mundo sabemos que elas não estão nos databases mais completos das IAs. E que, se quisermos sentir o pulso das cidades que visitamos e fazer outros se apaixonarem por elas, só as histórias contadas com paixão e memória é que realmente encantam.

E é por isso mesmo que, sonhando estar agora em Paris, eu encerro pedindo: "Brigitte, s'il vous plaît, encore un calva!".

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