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Jovens que perderam prova por tiroteio no Rio passam no vestibular

Alunos entram na faculdade após guerra da Rocinha forçar falta em teste da Uerj

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Moradora da Rocinha, Brena Carvalho Ferreira, 18, entrou em pedagogia na Uerj, mesmo após perder prova em razão de tiroteio
Moradora da Rocinha, Brena Carvalho Ferreira, 18, entrou em pedagogia na Uerj, mesmo após perder prova em razão de tiroteio - Ricardo Borges/ Folhapress
São Paulo

Da janela do ônibus, Lara viu o campus enorme da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, a faixa “Uerj resiste” e, sem saber o motivo, sentiu um desejo forte de estudar lá. “Fiquei doida com o lugar e pensei: ‘preciso vir para cá’.”

O ônibus passou rápido, e a Uerj ficou para trás. “Aí caiu uma lágrima, porque achei que isso nunca fosse acontecer.” Para a menina de 17 anos, moradora da Rocinha e aluna de escola pública, passar na melhor faculdade de direito do Rio era “querer demais”.

Convencida pela diretora de um pré-vestibular comunitário de que ela podia entrar na Uerj, Lara Fernandes Torres passou um ano estudando para a estadual.

Para pagar os R$ 220 do vestibular, trabalhou como babá. Apesar da grave crise financeira —por isso a faixa “Uerj resiste”—, a universidade é uma das melhores do país.

Na manhã do vestibular, em 17 de setembro, enquanto Lara tomava banho e se arrumava para a prova, um grupo de traficantes invadiu a favela, desencadeando um intenso tiroteio e uma guerra de facções.

Naquele dia, ao menos 11 estudantes da Rocinha foram impedidos de sair de casa e perderam o exame da Uerj. Lara estava entre eles.

Apesar disso, conteve o desespero, intensificou os estudos e conseguiu nota tão boa nas outras etapas que, em janeiro, foi aprovada na faculdade dos seus sonhos. Nos primeiros dias de aula na Uerj, em abril, a jovem, de 19 anos, se beliscava para saber se aquilo tudo era real. “Entrei no banheiro e pensei: ‘caramba, não acredito que estou aqui’.”

Além dela, ao menos outros quatro alunos da Rocinha que perderam a prova passaram no vestibular. Na época, no ápice dos confrontos, a Folha conversou com três deles que, por segurança, pediram para não serem identificados. 

Agora, Ítalo Ferreira, 19, Marcela Barros, 19, e Brena Carvalho Ferreira, 18, avaliam que, embora tenso, o clima na favela está um pouco melhor do que nos meses da invasão.

Por isso, se sentiram confiantes para informar seus nomes e, ao mesmo tempo, estão orgulhosos do resultado no vestibular. Jane Medeiros, 20, também foi aprovada.

Após perderem uma das provas da Uerj, precisaram manter o foco para não desistir dos outros exames.
Nas semanas seguintes, os tiroteios fecharam os cursinhos, gratuitos, onde os alunos estudavam: o Pecep (Projeto de Ensino Cultural e Educação Popular) e o PVCR (Pré-Vestibular Comunitário da Rocinha). Foram semanas sem aula, às vésperas de provas importantes, da PUC e do Enem.

Alguns precisavam dormir fora de casa ou, se ficavam na favela, tinham dificuldades para se concentrar, com os tiroteios. Em alguns casos, ficaram no meio do fogo cruzado, ao entrar ou sair de casa.
“A gente ouve desde sempre que precisa estudar para poder melhorar e sair daqui. E, quando vai fazer a única coisa que pode te tirar da favela, é impedido pela violência. É frustrante”, lembra Jane. 

Nesse período conturbado, o apoio emocional dos diretores voluntários dos projetos foi essencial, afirmam os jovens. “Eles ajudaram muito. Reforçamos os estudos para as próximas provas, para compensar a que tínhamos perdido”, diz Lara, cujo pai é porteiro e a mãe, aposentada.

Lara entrou na Uerj por cota e Brena, em pedagogia, por ampla concorrência. Segundo Lara, a insegurança em relação à sua formação quase a dissuadiu de tentar. “Eu ficava repetindo que não tinha base. Mas a diretora me disse que eu conseguiria sim, e ela ia me ajudar. Ter alguém te dizendo ‘você pode’ foi fundamental. Nunca tinha ouvido isso na escola”, afirma Lara, sobre uma das diretoras do Pecep, Maitê Ramos, de 25 anos.

Marcela, Ítalo e Jane não conseguiram a aprovação na Uerj, mas passaram na PUC-Rio. A sensação deles, mesmo reconhecendo o mérito próprio, é de incredulidade.

Jane pediu para a mãe ler o resultado, porque ela não se convencia. “Ela olhou a lista, e a gente chorou e gritou.”

A alegria veio junto de uma aflição: sem bolsa, a menina não poderia estudar lá —a mãe de Jane está desempregada, e o pai é barbeiro. “Mas deu tudo certo”, diz. Jane ganhou bolsa integral e cursa geografia na PUC. “É um universo novo, muito interessante.”

Ítalo passou para geografia e Marcela, para arquitetura, ambos para o segundo semestre na PUC. “Quando soube, comecei a pular, gritar. Foi um presente, depois de tudo que aconteceu com a gente”, lembra Ítalo, cujo pai é porteiro e a mãe está desempregada.

Assim como Jane, Ítalo e Marcela vão precisar de bolsa integral, uma preocupação constante para os jovens. Enquanto não começam as aulas, os dois trabalham para juntar dinheiro. Ítalo faz bicos de fotógrafo, e Marcela é vendedora em uma loja de roupas.

“Mesmo com bolsa, tem o material didático, que é muito caro, xerox, são vários gastos. Então já estou juntando meu dinheirinho”, diz a jovem. A mãe trabalha em uma loja de móveis, e o pai foi assassinado quando Marcela era ainda criança, na Rocinha. 

Para ela, passar na faculdade foi “uma sensação inexplicável”. As dificuldades, afirma, só aumentaram a sua alegria com o resultado positivo. Além da prova, Marcela também perdeu um amigo no ano passado. O menino foi esfaqueado na porta do cursinho, por motivos passionais.

“Uma pessoa da comunidade estar na faculdade tem peso muito grande. Não só por ser a primeira da minha família, mas porque me sinto uma sobrevivente”, diz Marcela.

Brena também trabalha para pagar os gastos com os estudos. De dia faz pedagogia na Uerj e, de tarde, é professora de creche, onde ganha menos de um salário mínimo. De noite, estuda ao chegar em casa.
Aos sábados, Brena trabalha como voluntária no Pecep. Lara também voltou: “eu amo aquele lugar”. “Elas são a maior prova de que o projeto dá certo”, afirma Maitê, uma das diretoras do projeto.

Ítalo e Jane também são voluntários no PVCR. “Lutamos não só para botar favelados na universidade, mas para que possam alcançar seu potencial e ser cidadãos”, diz Marcos Barros, 38, morador da Rocinha e um dos coordenadores.

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