Milícias do Rio invadem e loteiam terrenos para expandir extorsão

Disque-Denúncia recebe relatos sobre grupos criminosos em áreas públicas

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Comunidade de Rio da Pedra, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde milícias têm expandido sua ação
Comunidade de Rio da Pedra, na zona oeste do Rio de Janeiro, onde milícias têm expandido sua ação - Custodio Coimbra - 5.abr.2018/Agência O Globo
Thiago Amâncio Luiza Franco
Rio de Janeiro

As extorsões em um conjunto habitacional no extremo oeste do Rio de Janeiro costumam ocorrer pela manhã, por volta das 9h, às sextas-feiras ou sábados. Os valores variam de acordo com o tamanho do comércio. Até aí, o convencional.

Até que um homem invadiu um terreno baldio, loteou-o e começou a vender os espaços —inclusive uma praça foi loteada e vendida. A 200 km dali, em Arraial do Cabo, construíram uma rua em um parque estadual e passaram a lotear os terrenos.

Esses são alguns de uma série de relatos que o Disque-Denúncias do Rio recebeu só nos primeiros dias de abril. Além desses casos, Polícia Civil e Ministérios Públicos estadual e federal investigam uma série de denúncias que mostram como as milícias no Rio descobriram uma maneira de expandir seu mercado: além de extorquir moradores e comerciantes em suas áreas de influência, esses grupos passaram a construir e vender casas de modo a aumentar a lista de “contribuintes”.

Alguns dos casos ocorrem sobre áreas de proteção ambiental e até terras públicas. O Ministério Público Federal apura denúncias de pressão de milícias sobre uma ocupação de um movimento de moradia em uma área de proteção ambiental em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, cujas terras atualmente pertencem ao Incra.

Segundo moradores, milicianos retiraram placas que sinalizavam a ocupação e marcas do governo federal e tentaram lotear a área. “Eles passam aqui por dentro armados, mandam recados… A gente evita até procurar a polícia pra não ficar exposto, preferimos tentar regularizar a terra com os órgãos federais de uma vez”, afirma um senhor que prefere não ser identificado.

A região está em área de transbordamento dos rios Sarapuí e Iguaçu, sujeita a alagamentos e a germinação da água —inclusive por vasos sanitários. Para lotear, as milícias precisam aterrar a área, na maior parte das vezes de forma amadora, o que causa impactos no meio ambiente e até em comunidades vizinhas. 

Uma moradora de um bairro ao lado disse à reportagem que recentemente ficou um mês sem água porque obras de milicianos afetaram seu abastecimento. Além disso, a região é rica em artefatos arqueológicos (escavações já encontraram urnas funerárias, cerâmicas, cachimbos e adornos indígenas) que se perdem com a atuação irregular.

A expansão do mercado imobiliário também ocorre em locais onde a milícia é mais consolidada, como em Rio das Pedras, na zona oeste. Na prática, com esses loteamentos, descobriram como aumentar o próprio mercado, afirma o sociólogo José Cláudio Souza Alves, da UFRRJ (Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro).

“Eles criaram um mercado autossustentável, dão para os compradores documentação falsa”, afirma ele, que também mora na Baixada.

Segundo o ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, a principal suspeita sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL) é que os autores do crime estejam envolvidos com a milícia. Marielle foi assistente do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL) na CPI que, há dez anos, apurou a atuação desses grupos no estado —ameaçado, Freixo ainda hoje precisa de escolta pessoal.

As milícias ganharam força nos anos 1990, formadas por policiais, bombeiros e agentes penitenciários que se uniam para expulsar traficantes e assaltantes de seus bairros. Com o estado longe do território, criaram sistema de transporte clandestino, como vans, e passaram a vender gás e TV a cabo pirata.

Passaram a controlar a venda também de cigarros, tanto ilegais (contrabando), quanto legais, com exigência de sobrepreço e participação nos lucros. Atualmente, onde controlam o sistema de transporte, proíbem até mesmo a circulação de motoristas da Uber.

As maiores vítimas são comerciantes regulares. Os grupos cobram taxas de comércios com valores de acordo com o porte da vítima, mas que costumam ser entre R$ 30 e R$ 50 por semana. Em regiões pobres, é o suficiente para forçar o fechamento de um comércio. Quando algum miliciano é preso e não consegue concluir a cobrança de todos os comerciantes, outro agente chega a cobrar retroativamente na semana seguinte.

Além de lotear novas áreas, cobram uma taxa entre 10% e 15% quando algum morador vende um imóvel.
“Eles são mais organizados, conhecem bem o aparato policial. E têm a possibilidade de virar uma máfia, dentro do estado, se a gente não combater agora”, afirma o promotor Jorge Furquim. “Agem de uma forma mais concatenada, sabem como funcionam investigações, fazem denúncias falsas para mudar o rumo de investigações. A contra-informação é muito grande.”

O perfil desses criminosos tem mudado. Além de policiais e bombeiros, as milícias passaram a aceitar outros que não são oriundos do poder público, os chamados “PIs”, ou “pé-inchados”, segundo a gíria das facções.

Até ex-traficantes passaram a integrar esses grupos, já que correm menos risco de confrontos bélicos com forças policiais do que se trabalhassem para o tráfico, diz o promotor. “Passaram a explorar até o tráfico”, diz Furquim. “Participam de roubos e cobram pedágio de assaltante. Não têm mais pudor, não têm mais aquela coisa de serem bem quistos na comunidade. Hoje é arma na cara de morador.”

Polícia prende centenas de pessoas em festa de milicianos no Rio
Polícia prende centenas de pessoas em festa de milicianos no Rio - Folhapress

SUSPEITOS SOLTOS

O Rio está sob intervenção federal na segurança desde 16 de fevereiro —decretada pelo presidente Michel Temer (MDB), que nomeou o general do Exército Walter Braga Netto como interventor.

Em abril, a Polícia Civil fez pelo menos três operações mirando um dos principais grupos de milicianos da capital fluminense, a Liga da Justiça, que tem se expandido em direção à Baixada Fluminense pelo menos desde 2016.

Um dos líderes da facção é Wellington da Silva Braga, o Ecko, e Danilo Dias Lima, o Tandera. Ele estava na festa em que 159 pessoas foram presas de uma só vez por suspeita de ligação com esses grupos —a maior parte deles foi solta na última semana, depois que o Ministério Público pediu a revogação da prisão de 138 deles.

Três homens tidos como seguranças dos milicianos —Anderson Santos (o Cheetos), Márcio Martins (Tui) e Felipe Oliveira (Cumbaca)— foram mortos em confronto na festa.

A justificativa inicial para a prisão de todos que estavam no local era a de que a festa havia sido organizada em homenagem à milícia e que só de participarem do evento já teriam vínculo com os milicianos.

O que foi descrito como uma reunião de milicianos, porém, acabou parcialmente desmontado. Parentes de presos apresentaram cartazes do evento, chamando a atenção para o fato de que a festa havia sido paga e aberta ao público.

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