Sem levar a lugar nenhum, escada engana na passarela de Congonhas

Estrutura em espiral tem acesso trancado, e usuários acabam pulando mureta

Foto mostra a escadaria, que termina em uma parede amarela
Acesso de escada para a passarela do aeroporto de Congonhas fica trancado - Diego Padgurschi /Folhapress
Marina Estarque
São Paulo

Atrasado para um voo em Congonhas, um passageiro salta do carro no canteiro central da av. Washington Luís, sobe às pressas uma pomposa escada em espiral e dá de cara com a lateral da passarela, trancada com cadeado.

Sacode a estrutura de metal, que impede a sua chegada urgente ao aeroporto, e brada desesperado: “Está fechada! Está fechada!”. Sem saída, joga primeiro a mala do outro lado da mureta, de cerca de um metro.

Depois lança uma das pernas, até cair inteiro, atabalhoado, dentro da passarela.

Enquanto corre para o aeroporto, é informado de que a escada está sempre fechada. “Quê? Então por que ela existe?”, questiona irritado, ainda arfando, o funcionário público Anderson Lima Coelho, 35. “Não sabia que não era para usar, não sou daqui”, justifica. 

Meia hora depois, um engravatado passa pela mesma corrida com obstáculos: sobe a escada, transpira, pula o muro. Nos picos de trânsito, a cena se repete como uma sequência de pegadinhas de TV.

A escada é parte da nova passarela de Congonhas, reinaugurada em janeiro. A reforma, de R$ 6,7 milhões, foi bancada por empresas na gestão João Doria (PSDB), após mais de dez anos de idas e vindas em projetos de restauração. 

A passarela, por onde passam cerca de 5.000 pessoas diariamente, foi projetada em 1970 pelo arquiteto João Batista Vilanova Artigas, ícone do modernismo brasileiro. Por ser parte do projeto original, a escada foi mantida, mesmo sem função.

Na época, havia um estacionamento no canteiro central, e a escada ligava o espaço à passarela. Hoje a área é coberta por um gramado e árvores. Em teoria, o pedestre não teria como alcançá-la porque não há semáforos ou faixas. Assim, se saltar de carro no local, além do risco de atropelamento, ficará ilhado.

Uma placa e algumas estacas, que delimitam parte do canteiro, indicam que o pedestre não é bem-vindo ali.  Vista de longe, entretanto, a escada parece um acesso rápido e convidativo à passarela —não há qualquer interdição na sua base. É só no topo que o pedestre percebe a cilada, quando não há mais volta. 

Segundo o arquiteto Marco Artigas, neto do criador da passarela e responsável pelo projeto de reforma, junto com a arquiteta Helena Camargo, a escada tem valor histórico. “A gente sempre achou que ela tinha que permanecer por ser parte do conjunto da passarela e da memória da cidade.” 

Além disso, diz que a escada compõe um bloco de sustentação da passarela. “A demolição seria complexa.” 

Hoje a estrutura serve apenas para funcionários que fazem a manutenção do canteiro. “Ela foi feita para ficar fechada, a pedido da prefeitura. Manter aberta iria incentivar ainda mais as pessoas [a saltarem no canteiro]”, diz Artigas. 

No futuro, caso uma ciclovia ou corredor de ônibus sejam feitos no local, afirma, a escada voltaria a ter função. “Ela está lá para isso, flexível para uma mudança de uso.”

O arquiteto considera a atitude dos viajantes uma irresponsabilidade. “Na minha visão, é tão claro que não é para descer no canteiro central. Mas acho que não é todo mundo que pensa assim. Se está acontecendo, alguma coisa tem que ser feita, uma sinalização, porque é perigoso”. 

Para o urbanista e professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Kazuo Nakano, a situação revela “um erro de projeto”. “Uma escada é para levar de um lugar para outro. Reformar assim é jogar dinheiro fora”. Ele ressalta que a estrutura pode ser uma oportunidade para aproveitar melhor o canteiro. 

O engenheiro e presidente da Associação Brasileira de Pedestres (Abraspe), Eduardo Daros, afirma que a pessoa que salta no canteiro central está cometendo um erro. “Mas está mais errado ainda deixar uma escada ali. É uma pegadinha.” Se há pessoas que sobem a espiral por engano, defende ele, a sinalização é falha. 

“A escada passa uma mensagem errada. O projetista não pode partir da ideia de que todos são iguais a ele e vão se comportar como ele”, afirma.

Daros recomenda isolar o canteiro, com uma sinalização clara e “inteligível para todos”. O engenheiro destaca que é preciso encontrar soluções para o engarrafamento na entrada de Congonhas. “É lá que começa o problema.” 

Nos anos 2000, o Condephaat, órgão estadual de patrimônio, aprovou o tombamento de várias obras de Vilanova Artigas. As passarelas, entretanto, não estavam entre elas.

Segundo relatório do órgão, passarelas são soluções padronizadas e paliativas e, portanto, removíveis. Afirma ainda que restringir a modificação dessas estruturas, ligadas ao trânsito, pode trazer dificuldades para o sistema viário.

Escada de acesso para a passarela do aeroporto de Congonhas fica trancada e confunde passageiros. A escada sai do canteiro central e leva para a passarela da av Washington Luis
Escada de acesso para a passarela do aeroporto de Congonhas fica trancada e confunde passageiros. A escada sai do canteiro central e leva para a passarela da av Washington Luis - Diego Padgurschi /Folhapress

“Sempre poderá haver projetos urbanísticos que alterem as dimensões ou eliminem [...] qualquer passarela, inclusive as de Vilanova Artigas, daí o tombamento ser um instrumento nada recomendável.

Não interessa nem à preservação nem ao planejamento urbano que o bem se torne monumento para a mera contemplação”, diz o relatório. 

O arquiteto Silvio Oksman, que era conselheiro do Condephaat quando o processo foi votado, avalia que há uma contradição na reforma. Para ele, a passarela foi descaracterizada, com uma nova cobertura e materiais diferentes. 

“As intervenções foram muito radicais, não foi um projeto de preservação. Ao mesmo tempo, deixaram uma escada que não tem uso e que acaba gerando um problema. Não é um juízo de valor ou estético do projeto, acho que há um problema de abordagem. Ou é para preservar ou não”, diz. 

Procurada, a prefeitura afirmou que a Associação dos Amigos da Passarela responderia às perguntas, apesar de o projeto ser uma parceria e ter sido aprovado pela gestão municipal. “Será estudada e apresentada à prefeitura uma alternativa que torne mais clara a função histórica da escada”, disse a associação.

Enquanto para especialistas a escada suscita um debate sobre urbanismo, para usuários permanece um mistério. 

“Nunca entendi para que serve isso aí”, diz Marcos Silva, 58, despachante de voo há três décadas em Congonhas. “Não tem serventia nenhuma”, garante um guarda municipal, vigia da passarela. Uma funcionária do aeroporto arrisca um palpite: “Foi feita errada”. 

Já os vendedores ambulantes, que assistem de camarote aos equívocos diários dos passageiros, culpam a correria: “A pressa é inimiga da perfeição”.

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