Acordo bilionário pode tirar Guarulhos da pré-história do sistema de água e esgoto

Prefeitura está prestes a assinar contrato com a Sabesp, com quem tem uma dívida de R$ 3,2 bilhões

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Guarulhos (SP)

Todas as madrugadas, a cozinheira Lúcia Regina Silva, 41, usa uma mangueira para encher o tonel que fica na calçada em frente à sua casa. Após o meio-dia, quando diariamente as torneiras do bairro ficam secas, é esse reservatório que é usado para abastecer a casa.

No fim da rua, o condomínio onde mora Liliane Cocuzzi, 38, também sofre cortes diários de água. Perto dali, o comerciante Lorinaldo, 47, enche a caixa-d’água ao fim do dia com a ajuda de um poço irregular nos fundos de sua casa.

Em outro bairro, uma indústria química depende de caminhões-pipa para fazer insumos farmacêuticos.
As cenas de um frágil sistema de abastecimento de água ocorrem em Guarulhos, vizinha à cidade de São Paulo e dona da segunda maior população do estado e da 13ª do país, com 1,3 milhão de habitantes.

O cenário de escassez é fruto de décadas de baixo investimento em sua rede de água e esgoto e de um longo embate com a Sabesp (companhia paulista de saneamento), que parece ter chegado ao fim.
A Prefeitura de Guarulhos está prestes a assinar um contrato com a Sabesp, e a promessa é de regularizar o fornecimento de água, ampliar o irrisório tratamento de esgoto e saldar uma antiga dívida bilionária com a estatal.

A meta é reestabelecer o abastecimento regular em toda a cidade em até um ano. Hoje, a prefeitura admite usar caminhões-pipa para abastecer algumas escolas e unidades públicas de saúde.

Guarulhos tem um longo histórico de falhas no saneamento. O abastecimento de água sempre foi irregular e não conseguiu acompanhar o crescimento da cidade. As tubulações de água mal conseguem dar conta de atender toda a cidade num dia normal.

Por lá, o serviço de saneamento é tocado pela autarquia municipal Saae (Serviço Autônomo de Água e Esgoto). Mas sem ter grandes represas e estações de tratamento de água, o Saae compra 92% de sua água da Sabesp. E essa é a origem de uma dívida que já se arrasta há duas décadas.

No fim dos anos 90, prefeituras de cidades da Grande São Paulo que também compravam água por atacado da Sabesp começaram a questionar o valor cobrado pela companhia. Diziam que a venda era pouco transparente. Desde então, Guarulhos passou a pagar menos ou simplesmente não pagar pelas remessas de água feitas pela Sabesp.

Em 2001, segundo a prefeitura, a dívida com a Sabesp girava em torno de R$ 564 milhões (em valores corrigidos). Após 15 anos, o débito já somava R$ 2,8 bilhões, o que inclui as contas de água e os juros.
O mecânico Jeová Santos, 70, faz troça da dívida do município. “Uma vez fiquei um mês sem pagar a conta de água, e o caras do Saae foram cortar minha água. Falei que não iriam cortar. Eles não pagam a água pra Sabesp e tenho que pagar a minha para eles?”.

Durante a crise hídrica que secou as represas paulistas de 2014 a 2016, a relação ficou ainda mais tensa entre a Sabesp e a Prefeitura de Guarulhos.

Sem receitas, a Sabesp pressionava ainda mais municípios devedores (como Santo André e Mauá, além de Guarulhos) e ameaçou até o corte do fornecimento de água. À época, Guarulhos disse que isso seria catastrófico.

Ainda que não tenha cortado o fornecimento, o volume enviado ao município foi reduzido, como para todo o resto da Grande SP.

Nas cidades operadas pela Sabesp, a menor disponibilidade hídrica resultou em um racionamento com redução da força do bombeamento da água nas tubulações. Um dos efeitos foram torneiras secas durante todos os dias, principalmente em bairros periféricos e mais altos, onde vive a população mais pobre.

Em Guarulhos, o Saae decidiu optar por um rodízio, ou seja, bairros inteiros chegaram a ficar dois dias sem água, a cada dia com abastecimento. Com isso, a população de Guarulhos que sempre teve um fornecimento irregular passou a sofrer ainda mais com a forte estiagem.

“Há 24 anos moro aqui em Guarulhos e sempre foi ruim. Hoje, a gente tem água só até o meio-dia, mas pelo menos tem. Pior era na crise”, conta a cozinheira Lúcia Silva.

Ainda durante a crise, no final de 2014, houve uma aproximação entre Guarulhos e a Sabesp para saldar a dívida.

Uma primeira proposta de pagá-la em 40 anos não avançou, e a esperança da prefeitura de barrar ou revisá-la na Justiça também não deu certo.

A dívida bilionária se tornou impagável e a solução pensada foi a assinatura da concessão do serviço de saneamento pela Sabesp na cidade, com a amortização do débito a longo prazo. Negociações do tipo já haviam sido feitas pela Sabesp em outras cidades.

Com a nova gestão na prefeitura, a partir de 2017, o município passou a pagar um total de R$ 18 milhões mensais pela água da Sabesp, mas sem tocar na dívida, que hoje já chega a R$ 3,2 bilhões.

Para a prefeitura, a situação ficou insustentável no fim de 2017, quando uma Emenda à Constituição estabeleceu o prazo de 2024 para pagamento de dívidas públicas.

Outro gargalo que deve ser superado na cidade é o baixo tratamento de esgoto (de apenas 10%). Um volume de 3.400 litros por segundo de esgoto vai direito para o rio Tietê.

Em 2009, o Ministério Público cobrou que a cidade aumentasse o tratamento para 80% até 2017. Em 2014, a cidade até tentou firmar uma PPP para a construção de estações de tratamento. Parte das contas de água e esgoto serviriam para custear o projeto.

Mas, ao ver o empreendimento, a Sabesp acionou a Justiça, alegando que em regiões metropolitanas iniciativas desse tipo deveriam ser decididas com o governo do estado, o que não ocorreu.

A Sabesp também temia que, se o dinheiro das contas de água e esgoto da população ficasse comprometido com as novas estações de tratamento, seria mais difícil cobrar o pagamento da sua dívida.
Empresas privadas do setor criticavam medidas desse tipo da Sabesp, alegando competição desleal e travamento do avanço no saneamento.

Sem conseguir cumprir o acordo com o Ministério Público, Guarulhos fez um novo compromisso. O plano agora é universalizar o tratamento de esgoto até 2026.

De qualquer maneira, não se sabe qual será o peso da Sabesp na tarefa de solucionar o atraso no esgoto da cidade, já que o município quer também tocar projetos próprios. Atualmente, com o aval da Câmara local, Sabesp e Guarulhos dizem fechar os últimos detalhes para assinarem um contrato de 40 anos.

Sabesp se compromete com um investimento de R$ 1,7 bilhão na rede de água, R$ 1,3 bilhão na coleta e tratamento de esgoto e R$ 800 milhões em repasses para o município.

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