Déficit habitacional e população de rua crescentes desafiam gestão Bolsonaro

Sem propostas claras para a área, presidente eleito fala em tipificar invasões como terrorismo

O número de unidades necessárias para suprir a demanda habitacional do Brasil chegou a 7,77 milhões; em 2007, era de 7,26 milhões
O número de unidades necessárias para suprir a demanda habitacional do Brasil chegou a 7,77 milhões; em 2007, era de 7,26 milhões - Marlene Bergamo/Folhapress
Marina Estarque
São Paulo

O governo do presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), terá que enfrentar um déficit habitacional crescente, agravado pela crise econômica, além de uma expansão da população de rua e das ocupações em grandes cidades.

Apesar da gravidade da situação, o plano de governo de Bolsonaro não tem propostas para a área. Durante a campanha, o então candidato falou pouco sobre habitação, mas gravou vídeo em que se comprometia a manter o Minha Casa Minha Vida e reduzir taxas do programa.

Em 2017, o déficit habitacional no país atingiu o maior nível dos últimos dez anos, segundo pesquisa da Fundação Getulio Vargas (FGV) e da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias. 

O número de unidades necessárias para suprir a demanda habitacional no país chegou a 7,77 milhões. Em 2007, era de 7,26 milhões.

O componente que mais pesou no aumento do déficit foi o ônus excessivo do aluguel —quando uma família ganha até três salários mínimos e gasta mais do que 30% da renda com moradia. 

Nesses casos, a alta despesa com o aluguel compromete necessidades básicas da família, como alimentação e educação. “É um desafio habitacional enorme”, diz a economista e coordenadora de projetos da FGV, Ana Maria Castelo. 

Mesmo com o programa Minha Casa Minha Vida, iniciado em 2009, o ônus excessivo do aluguel aumentou 70% no período, atingindo 3,3 milhões de domicílios brasileiros em 2017, o equivalente a 42% do total do déficit.

“Teve um salto em 2014 e 2015, associado à deterioração da economia, da renda e do emprego”, afirma Castelo. 

O ônus excessivo do aluguel é um problema típico das cidades, onde os terrenos e imóveis são caros. “As famílias pagam um aluguel alto para morar perto do trabalho”, diz.

O modelo do Minha Casa Minha Vida dificulta a criação de novas unidades nesses centros. Para lucrar mais, as empreiteiras preferem construir em terrenos mais baratos e, portanto, na periferia das cidades atendidas. Por isso, afirmam especialistas, o programa teve menor impacto nesse aspecto do déficit. 

Há um consenso de que, para reduzir o ônus do aluguel, não necessariamente é preciso investir na produção de unidades. Políticas de renda, descentralização da oferta de emprego e planos de mobilidade são apontadas como caminhos possíveis. 

Até políticas de segurança jurídica e informação de crédito, como o cadastro positivo, podem baratear o aluguel ao substituir o seguro e o fiador. 

Apesar de não ter segurado o ônus do aluguel, de acordo com Castelo, o Minha Casa Minha Vida teve um efeito na redução de outros componentes do déficit habitacional, como a habitação precária, que teve queda de 11% entre 2009 e 2017. Atualmente, representa 12% do déficit ou 967.270 unidades.

Considerado um dos problemas mais urgentes, a habitação precária é um risco para a vida dos moradores e também para saúde pública. É quase unanimidade que as políticas de moradia precisam focar nesse público socialmente mais vulnerável. 

“O déficit total não deve ser entendido como necessidade de intervenção estatal urgente. A prioridade tem que ser esses 900 mil que moram em casa de papelão, barracos. São pessoas que não têm renda, FGTS. Muitas nem têm documento”, diz a economista Luiza Petroll Rodrigues, especialista em crédito habitacional. 

Para essa população, a casa precisa ser praticamente doada, o que requer um subsídio público maior. “É muito mais caro financiar 900 mil casas para esse público do que 1,8 milhão para classe média baixa.”

Uma das principais críticas ao programa Minha Casa Minha Vida é a falta de foco na faixa 1 (famílias com renda até R$ 1.800 e imóveis com subsídio de até 90%). 

O programa entregou pouco mais de 4 milhões de unidades desde o início, em 2009, até agosto de 2018, de acordo com o Ministério das Cidades. Apenas 1,38 milhão, entretanto, foram para a faixa 1, ou seja, cerca de 34% do total. 

A situação se agravou nos últimos anos. As contratações para essa faixa caíram de  537.185 em 2013, quando atingiu seu ápice, para 16.890 em 2015, 36.858 em 2016 e 22.222 em 2017. Até setembro de 2018, foram 75.844. 

Somadas, as famílias que ganham até três salários mínimos correspondem a 92% do déficit habitacional.
Petroll defende que o governo elimine as faixas 2 e 3, para concentrar os recursos na faixa 1. Já para o professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) da USP Nabil Bonduki, ex-vereador pelo PT, eliminar as faixas superiores poderia gerar um efeito inflacionário no preço do aluguel. “É preciso manter a produção, mas privilegiar a faixa 1”, diz. 

Outra crítica importante ao programa é que ele construiu conjuntos habitacionais distantes dos grandes centros, em locais com pouco acesso a emprego, serviços e equipamentos públicos. Entretanto, a maioria dos especialistas concorda que o Minha Casa Minha Vida precisa continuar. 

“É um caso de sucesso, que acumulou experiências positivas. E é o único programa que tem escala. Mas precisa ser aprimorado”, afirma Petroll. 

Para a professora da FAU-USP Raquel Rolnik, que foi relatora especial da ONU para o direito à moradia, o programa não é o melhor modelo para atender os mais vulneráveis. 

“Em uma situação de extrema pobreza, a pessoa não tem condições de arcar com os custos de uma casa própria, como contas e condomínio”, diz ela, que recomenda a locação social para esses casos. 

Diferente do auxílio aluguel, em que a pessoa recebe o valor e busca moradia, nesse modelo imóveis específicos são disponibilizados pelo poder público para locação subsidiada.

A moradora da favela da Tribo, na zona norte de São Paulo, Tatiane da Silva, 25, tem opinião parecida sobre o Minha Casa Minha Vida: “É coisa de rico”, afirma. O seu barraco, em um vale cheio de barro e esgoto, parece uma colcha de retalhos mal costurada: as paredes são folhas finas de madeira, portas velhas e telhas de zinco sobrepostas. 

Antes de perder o emprego, Tatiane morava com os filhos na Brasilândia, também na zona norte. “Não consegui pagar o aluguel, de R$ 500. Era uma casinha de azulejo, de bloco”, afirma ela, que vive há um ano em uma favela, no Jardim Damasceno. 

Separada do marido, Tatiane sustenta os três filhos pequenos sozinha, com bicos de faxineira. A do meio, de 1 ano e 5 meses, tem asma e bronquite. “Nessa casa ela fica muito mais doente. Mas eu tento agasalhar bem as crianças”, lamenta ela, com Mateus, de dois meses, no colo. 

Cerca de 1.300 famílias vivem na comunidade, muitas delas em barracos improvisados como o de Tatiane. De acordo com a líder comunitária Irani Guedes, 45, as casas são invadidas por serpentes e escorpiões, e o local tem alto risco de deslizamento. 

Em julho, um incêndio na favela matou quatro pessoas. “Tenho medo, porque, se pegar fogo, como eu vou conseguir correr sozinha com três crianças?”, diz Tatiane. 

Tatiane da Silva, 25, desempregada, e seu filho, Mateus, na favela da Tribo, na zona norte de SP
Tatiane da Silva, 25, desempregada, e seu filho, Mateus, na favela da Tribo, na zona norte de SP - Marlene Bergamo/Folhapress

Segundo Irani, o terreno é uma propriedade particular. “A gente quer pagar pela terra, legalizar”, diz. 
De acordo com especialistas do setor, a redução do déficit habitacional passa também por políticas de regularização fundiária. 

Assim como Tatiane, o desemprego e o aumento dos aluguéis empurraram milhares de pessoas para moradias precárias ou ocupações. Em São Paulo, por exemplo, o número de prédios invadidos na região central saltou de 42, em 2013, para 70 em 2018, segundo estimativa da prefeitura.

Em seu plano de governo, Bolsonaro propõe tipificar como terrorismo as invasões urbanas e rurais. “Essas pessoas estão desesperadas, sem nenhum acesso a moradia. O que ele chama de terrorismo é apenas expressão do déficit habitacional”, diz Rolnik. 

Procurado pela reportagem, o presidente eleito não respondeu aos questionamentos. 

Além das ocupações, uma pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) estima que haja mais de 101 mil moradores de rua no país. Outro estudo, feito em 2007 pelo Ministério do Desenvolvimento Social, apontava que havia cerca de 50 mil. 

Para lidar com essa demanda, especialistas recomendam combinar estratégias. De acordo com eles, um programa, como o Minha Casa Minha Vida, precisa ser complementado com parcerias público-privadas, locação social, urbanização de favelas e reforma de imóveis vazios.

Havia, em 2015, 7,9 milhões de domicílios vagos no país, segundo pesquisa da Fundação João Pinheiro. Cerca de 20% deles, na área rural. 

Para especialistas, a ocupação desses imóveis não solucionaria o déficit. Muitos estão inabitáveis e em locais sem demanda , como cidades que perderam população. 

O mapeamento e reforma dessas unidades podem sair mais caros do que a construção de imóveis novos. E a escala seria menor do que programas como o Minha Casa Minha Vida. “Tem que fazer um projeto de reabilitação para cada edifício, uma licitação específica, é um trabalho hercúleo”, diz Bonduki.

Ainda assim, o uso dessas unidades é viável e necessário, avaliam especialistas. “Esses prédios ocupam lugares privilegiados, e é dever do poder público evitar esses esqueletos, que geram abandono e deterioração urbana”, diz. 

Durante a campanha, Bolsonaro afirmou que vai extinguir o Ministério das Cidades, declaração considerada alarmante por especialistas. Em entrevista em agosto, o então candidato disse que enviaria os recursos de habitação diretamente para municípios: “E lá o prefeito vai usar essa verba no que achar melhor”.

A pasta tem a função de elaborar e financiar políticas nacionais de habitação, mobilidade e saneamento nas cidades. Sem o ministério, o temor é que essa coordenação deixe de existir. 

De acordo com o presidente do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, Luciano Guimarães, a maioria dos municípios não tem condições técnicas de realizar um planejamento urbano. “Somos um dos países mais urbanizados do mundo, precisamos do Ministério das Cidades.” 

 
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