Descrição de chapéu Coronavírus

Pandemia obriga família a pagar aluguel para manter casa, mas morar na rua por comida

Com despensas vazias, paulistanos vão para calçadas no centro em busca de alimentos

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São Paulo

A quarentena por causa do coronavírus levou para debaixo das marquises da capital paulista famílias que têm casa, mas, sem trabalho, não conseguem pagar o aluguel e ainda abastecer a despensa. Elas escolhem manter a moradia, mas, em busca do que comer, trocam o teto pelo relento.

É o caso do casal Ingrid Alves, 26, e Júnior Bezerra, 27. Eles, junto com os filhos de 6 e 4 anos, dormem algumas semanas em frente ao Theatro Municipal, no centro, a 1h30 de ônibus de casa, no Cantinho do Céu, periferia do extremo zona sul. Ali, recebem café da manhã, almoço e janta em marmitas feitas por voluntários. Guardam parte para levar embora.

Os dois trabalhavam como camelôs e vendiam de bala a pano de prato em semáforos. Desde março, no entanto, com menos carros e mais medo de infecção pelo coronavírus, as vendas pararam. “Ninguém quer mais abrir o vidro. Se antes já era difícil, agora as pessoas têm mais um motivo para não olhar para você”, diz Júnior.

O auxílio emergencial do governo federal, de R$ 600, não foi suficiente para cobrir os gastos. “Conseguimos finalmente montar a casa no começo do ano. Quando estávamos certinho lá, veio a pandemia. Agora tem lugar para morar, mas não tem o que comer. Vimos o armário esvaziar. O que sobra não dá para comprar cesta básica, mistura, gás e bolacha para as crianças.”

Ele diz ter medo de ficar doente, por ser fumante e obeso. “Ou a gente morre de 'corona' ou de fome.”

A prefeitura não sabe dizer se há hoje mais pessoas vivendo nas ruas da capital. Isso porque a última contagem feita pela gestão municipal foi a do censo 2019, divulgado no fim de janeiro, quando havia pouco mais de 24 mil pessoas nessa condição.

A Folha percorreu nesta quinta (4) e sexta-feira (5) bairros onde comumente se concentram pessoas em situação de rua. Alguns estavam esvaziados, outros aglomerados. Todos os moradores de rua tinham máscaras de pano, mas quase ninguém as usava antes de ser abordado pela reportagem. Ninguém reclamou de passar fome na rua. As marmitas vêm da prefeitura ou de voluntários, mas não rareiam.

"Aqui, olha, tem até mamão, pão, leite e água com gás", diz Marcos Antônio de Souza, 45. Até abril ele trabalhava como gari, mas acabou dispensado no meio da pandemia, junto com outras dezenas de funcionários. Saiu da pensão em que vivia, na avenida Vergueiro (zona sul), e se instalou a poucos metros dali, na calçada do Centro Cultural São Paulo.

"Ficar na rua não é bom, sua vida fica exposta, tem muita maldade, preconceito. Você vê que tacam fogo, batem", diz, lamentando perder o antigo salário de R$ 1.300. Marcos não tem família, nunca foi casado nem teve filhos. "Se minha mãe fosse viva e soubesse que eu tava na rua, viria me buscar na hora", conta ele, que não usa a máscara "porque sufoca" e está sem álcool em gel, já que "o tubinho que me deram era pequeno".

Sua companhia são os livros e bottons de punk rock. Ele também guarda uma mala de roupas e o casaco, parte do uniforme de gari. "Não passo fome nem sede aqui. Mas quero voltar logo a ter um trabalho", diz.

O caso de Marcos se repete. São pessoas que ganhavam em torno de um salário mínimo e perderam o emprego ou a fonte de renda autônoma na quarentena. Já vulneráveis, foram rapidamente empurradas para as calçadas.

Um exemplo é o casal Eliete de Andrade, 31, e Jorge Muler, 30. Eles moravam no Butantã e trabalhavam informalmente em uma loja de roupa do Brás. Ganhavam cerca de R$ 1.200 por mês. Mas, quando a loja precisou fechar as portas, em março, ambos foram demitidos sem nenhum direito.

Foram parar debaixo de uma marquise no Largo de São Francisco, no centro. Conseguiram uma barraca com a ajuda de um frade. Assim também têm conseguido comer um miojo quente e tomar banho.

Eliete é baiana e está em São Paulo há oito anos. Sem os documentos que perdeu, ela não consegue pedir o auxílio emergencial. O benefício de Jorge está em análise.

“Nós nos cuidamos. Tem álcool em gel, máscara, lavamos a mão, as roupas”, dizem os dois, que estavam sem máscara. Os sintomas da Covid-19, enumera Eliete, são tosse, tontura. “A gente só não sabe mais porque tá sem celular, o dele foi roubado.”

Verônica Alves, 30, também tem dúvidas. “Sabemos que tem uma pandemia, mas não como se cuidar, para onde correr se pegar. Colocaram um monte de feriado na mesma semana, ninguém entendeu. Tem gente morrendo na rua mesmo, sem atendimento", diz ela sobre três casos em que as pessoas tinham sintomas de Covid-19.

Verônica explica por que não usa máscara. "Só tenho uma, de feltro, que pinica e me dá alergia."

Ela trabalhava vendendo brigadeiro na rua e o marido era carregador. Com o dinheiro, alugavam um quarto no Santana, por R$ 450. Quando pararam as vendas e os bicos, foram para uma ocupação, que acabou desocupada pela polícia pouco depois.

Com o auxílio emergencial, o casal tentou alugar outro quarto, no Glicério, mas diz ter sido impedido por ser transexual.

Gabi Dila, 54, outra mulher trans, trabalhava com customização de roupas em um projeto social e morava em um albergue. Em março, decidiu ir para o Nordeste, para perto da família, mas acabou expulsa de lá. “Disseram que eu tava levando a Covid para eles. Essa pandemia que fala, né?!”

Ela, que já teve tuberculose e pneumonia, agora dorme no Pátio do Colégio, no centro, “levando chuva, sol. Já tô começando a sentir a sinusite, essa dor de cabeça.” Sua máscara está larga e deixa o nariz à mostra.

“Claro que eu tenho medo, se eu pegar [a doença] é direto para o caixão. Mas também tenho medo da maldade da rua. De tacarem fogo nas bicha", diz.

A prefeitura, sob a gestão de Bruno Covas (PSDB), afirma ter reforçado a distribuição de marmitas nas regiões de maior demanda: Sé, Mooca, Lapa, Vila Mariana, Santo Amaro, Pinheiros e Santana. Foram 332 mil no total. Em abril, foram instalados no centro histórico banheiros e chuveiros, que têm funcionado, mas só ficam abertos até às 19h.

A gestão também diz ter distribuído 15 mil kits de higiene e 20 mil máscaras, além de 3.500 cartões do Bom Prato, o restaurante popular. A entrega de uma nova remessa, de 8.000 cartões, começou nesta segunda-feira (1). Quem não tem vaga fixa em albuergue poderá comer gratuitamente.

O déficit nos abrigos para pernoites é de cerca de 12 mil vagas. A prefeitura afirma ter criado na pandemia oito novos equipamentos emergenciais para acolhimento, totalizando 672 novas vagas.

Para um local na Lapa, na zona oeste, são enviadas as pessoas com suspeita de Covid-19, e em outro, na região da Vila Clementino (zona sul), atendidos os que forem diagnosticados.

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