Parceria da CNBB com evangélicos, Campanha da Fraternidade vira campo de batalha ideológica

Grupos conservadores da Igreja Católica acusam ação por texto com tom progressista; lançamento foi nesta quarta (17)

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Rio de Janeiro

Lançada nesta quarta (17), a Campanha da Fraternidade deslanchou uma nada fraternal batalha ideológica na Igreja Católica. Promovida em geral pela CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), a cada cinco anos ela é realizada de forma ecumênica, ou seja, com um texto-base abrangendo outras visões religiosas que não apenas a dos representantes do Vaticano.

A de agora, a cargo do Conic (Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil), enervou alas conservadoras do catolicismo, que veem um documento carregado de tintas progressistas. Com o tema "Fraternidade e Diálogo: Compromisso de Amor", a carta levanta quatro pontos que particularmente irritaram o bloco à direita:

1) Alveja "discursos negacionistas" sobre a Covid-19 e critica a "negação da ciência" e do papel da ONU (Organização das Nações Unidas) e a da OMS (Organização Mundial da Saúde) no combate à pandemia;

2) Cita a "necropolítica" que se voltaria "contra as maiorias falsamente consideradas minorias: juventude negra, mulheres, povos tradicionais, imigrantes, grupos LGBTQI+, todas e todos que, por causa de preconceito e intolerância, são classificados como não cidadãos e, portanto, inimigos do sistema";

3) Ainda que não cite o nome do presidente Jair Bolsonaro, ataca sua gestão ao desancar a "resistência ao isolamento social, tanto por parte do governo quanto de uma parcela significativa da sociedade";

4) Por fim, condena igrejas que continuaram abertas naquele começo de quarentena, "apesar das aglomerações causarem contaminações e mortes". O "lobby religioso" pressionou para que elas fossem incluídas entre as “atividades essenciais”, como se os templos não pudessem buscar alternativas não presenciais de acolhimento, de acordo com o texto.

O desgosto com o conteúdo encharcou a caixa de comentários dos perfis das dioceses nas redes sociais. Um fiel foi à página da Arquidiocese de Maringá, por exemplo, para cobrar que seu bispo repudie o "amálgama apodrecido de heresias".

Grupos conservadores de orientação católica tentam agitar boicotes à ação deste ano. O perfil do Educar Para o Céu é um exemplo: pede que seus 40 mil seguidores marquem "seu bispo, padre, paróquia e diocese" para coagi-los a abandonar a "ideologia na quaresma" —a campanha começa todos os anos na Quarta-feira de Cinzas, início deste período de 40 dias em que católicos se preparam para a Páscoa.

O Centro Dom Bosco divulgou uma carta enviada a dom Walmor Oliveira de Azevedo, presidente da CNBB, por dom Fernando Guimarães, à frente da Arquidiocese Militar do Brasil. Nela, dom Fernando diz que cabe aos bispos, "autênticos Mestres e guardiões do Depósito da Fé, garantir a ortodoxia da fé". Na sequência, afirma que os capelães militares não seguirão o texto formulado pela Conic.

Outros bispos, como o de Juiz de Fora (MG), anteciparam seu receio com o tom da ação. Segundo a CNBB, "a autonomia de cada irmão bispo junto aos seus diocesanos" será respeitada.

Na abertura da campanha, dom Joel Portella Amado, secretário-geral da CNBB, fez um clamor por união: tudo bem que Deus não criou clones que pensam igual, mas irmãs e irmãos devem abracar a proposta ecumênica "com o coração aberto, afastando o que divide". Diante dos "impasses da vida, onde as radicalizações e polarizações se manifestam, vacinemo-nos com o diálogo", propôs.

O documento convulsionou parte da direita católica mesmo antes do lançamento oficial. Há duas semanas, dom Odilo Scherer, arcebispo de São Paulo, defendeu-o no programa que comanda no Facebook todo domingo depois da missa.

Ele primeiro explica que, a cada quinquênio, a CNBB cede o preparo do texto a parceiros cristãos, deixando claro que o teor não partiu deles (embora um representante dos bispos estivesse na comissão da Conic que o aprovou).

Sugere "abaixar um pouco a fervura" do que define como uma polêmica "movida por um monte de preconceitos''. Questiona: do que adianta "acusar de ideologia de um lado, mas cometer o mesmo erro de posição ideológica oposta, dura, fechada"?

Quem "fica lá comentando umas frases, esqueceu o foco", diz dom Odilo. Ele próprio admite que há ali "questões que talvez eu não diria desse modo, mas, pelo amor de Deus, o foco é outro" .

A ideia de uma Igreja esquerdizada é alimentada por ativistas católicos leigos. Bernardo Küster, que ganhou popularidade com vídeos como "Projeto de Ditadura LGBTTQI+@Y123", virou um queridinho do bolsonarismo. Em mais de uma ocasião, acusou a CNBB de ser uma entidade empesteada de comunismo —começando pelo seu fundador, dom Helder Câmara (1909-1999), a quem se refere como "o arcebispo vermelho".

Em 2018, a cúpula da Igreja no Brasil já havia entrado em rota de colisão com militantes direitistas por conta da Campanha da Fraternidade. Ao apresentá-la, o então presidente da CNBB, cardeal Sérgio da Rocha, disse que a entidade rejeitaria “candidatos que promovam ainda mais a violência”, o que foi assimilado como uma indireta para Bolsonaro, que ainda pleiteava a Presidência da República.

O argumento da campanha atual é criação de um grupo que incluiu um cientista social, uma doutouranda em semiótica, um doutor em línguas vernáculas e uma teologa feminista, afirma a secretária-geral do Conic, a pastora Romi Márcia Bencke. Depois de formulado, foi discutido e aprovado por dois líderes católicos, um da Igreja Ortodoxa e seis evangélicos, sobretudo de igrejas protestantes históricas (só há um pentecostal).

O órgão é atacado por pastores como Silas Malafaia, que diminui a expressividade da Conic, "um antro de esquerdopatas travestidos de cristãos".

"Não tem nada de esquerda" no texto, diz Bencke. "O Conic não tem vinculação político-partidária. O que nos orienta é o Evangelho. Se você se orientar pela prática de Jesus, ele nunca incitou a violência e o ódio."

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