Passado colonial está na raiz da exploração sexual de crianças e jovens

Debatedores falam sobre o papel da escola e da formação médica para romper ciclos de violência

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Guarulhos (SP)

Nove meses transcorridos desde o caso da menina capixaba de dez anos que, abusada sexualmente por um parente, engravidou e teve que mudar de estado para realizar um aborto legal, o obstetra Olímpio Moraes Filho, coordenador da equipe responsável pelo procedimento, não pensa duas vezes ao afirmar que aquele episódio teve dimensão única.

Não foram poucos os casos que o médico pernambucano acompanhou. Desde 1996, Moraes trabalha no Cisam (Centro Universitário Integrado de Saúde Amaury de Medeiros), em Recife (PE), referência nos serviços de abortamento legal para mulheres e meninas.

Mas o caso de agosto de 2020 foi diferente. “Nunca eles [os grupos antiaborto] se sentiram tão fortalecidos, já que hoje são representados como força política no poder.”

Na época, uma extremista bolsonarista divulgou na internet a identificação da criança, contrariando a legislação brasileira; um grupo contra o aborto causou tumulto na frente do hospital onde ela estava, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, agiu nos bastidores para tentar
impedir o procedimento
.

A movimentação de grupos ultraconservadores para barrar o acesso de crianças estupradas ao aborto legal, segundo Moraes, é frequente. Nas mais de duas décadas trabalhando na área, ele observa uma característica que se sobressai: na maioria das vezes, os alvos dessas mobilizações são meninas negras e pobres —as mesmas que majoritariamente chegam para ser atendidas no sistema público.

Os relatos do médico foram compartilhados durante a quinta edição do seminário Exploração Sexual Infantil, realizada virtualmente pela Folha, com apoio do Instituto Liberta, na manhã
da última terça-feira (18).

Segundo dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, 2020 registrou 16.658 denúncias de violências sexuais contra crianças e adolescentes. Apenas 61% dos registros contêm a informação sobre a cor da vítima —desses, 56,3% eram negras.

O cenário se repete neste ano. Até a primeira quinzena de maio, 6.091 denúncias foram registradas pela ouvidoria. Das que identificam a cor, 55,7% foram cometidas contra crianças ou jovens negros.

Na visão da filósofa e colunista da Folha Djamila Ribeiro, a explicação para esses dados tem origem histórica e está intimamente ligada a opressões estruturais. O começo, diz ela, remonta à experiência colonial que durou quase quatro séculos no país.

“No período da escravidão já existia a exploração econômica da população negra. Em relação a meninas e mulheres, existia ainda a exploração sexual. As mulheres negras tinham seus corpos violados pelo estupro, e as crianças negras também eram mercadorias, já sofrendo violências sexuais, porque não eram vistas como crianças, mas sim como não humanas.”

Para Djamila, esse longo período, enraizado no que se tornou o Brasil atual, foi o início da sexualização dos corpos de mulheres e meninas negras.

No período pós-abolição, a falta de políticas públicas que rompessem com a exclusão fez com que a situação se perpetuasse, e as meninas seguissem exploradas até hoje, afirma. “Elas são abandonadas pelo Estado, carregam um histórico de opressões seculares e, muitas vezes, a justificativa errônea é de que elas gostam [do abuso sexual], são mais preparadas para isso.”

O reconhecimento do papel que raça e classe exercem nas violências sexuais contra crianças e adolescentes é central para que políticas públicas possam ser adaptadas e, assim, atender a todos os grupos, frisam os debatedores.

Djamila Ribeiro menciona o exemplo da Lei Maria da Penha, um marco do combate à violência contra a mulher, promulgada em 2006.

Em 2015, às vésperas dos dez anos do dispositivo, uma pesquisa mostrou que houve diminuição no número anual de homicídios de mulheres, mas que a queda tinha cor: enquanto o número de assassinatos anuais de brancas caíra 9,8% de 2003 a 2013, o de negras crescera 54%.

Às raízes históricas do problema se somam outras opressões. A psicanalista Vera Iaconelli, também colunista da Folha, afirma que uma cadeia de eventos violentos envolve a vítima. Quando o abusador é alguém da família, se torna ainda mais difícil para a criança ou o adolescente comunicar o que está acontecendo.

“Para uma criança, o adulto é referência. [Após o abuso], ela começa a duvidar dela mesma. Sente que aquilo é ruim, mas não consegue reconhecer totalmente o problema. Leva muito tempo para admitir que aquelas dores não eram para acontecer. Existe ali todo um jogo de poder.”

Há ainda um perfil transgeracional da violência, quando os abusos são naturalizados de geração em geração, o que pode acontecer dentro do núcleo familiar. Para Iaconelli, esse universo limita as possibilidades da criança e do adolescente e coloca barreiras a um dos primeiros passos para o tratamento de quem foi vítima do abuso, a verbalização da violência.

“Somos seres de linguagem. Falar é um passo importantíssimo. Primeiro você fala para si mesmo, para poder se escutar, mas também precisa ter confiança de que alguém possa te escutar. Falar e ser escutado é fundamental para não transformar a violência em destino”, diz a psicanalista.

Esse silenciamento faz parte do que a advogada Luciana Temer, presidente do Instituto Liberta e responsável pela mediação do seminário, caracteriza como um longo fio de invisibilidade.

“Se todo mundo que tivesse sido vítima de violência sexual em algum momento da vida fosse para a janela gritar ao mesmo tempo, seria um barulho ensurdecedor. A verdade é que o silêncio sobre essa violência é gigante e só será quebrado coletivamente.”

A escola tem papel chave para romper esse processo, já que é o primeiro espaço que a criança alcança depois da família e onde pode ser escutada por pessoas de fora do seu núcleo. Essa é uma das razões pelas quais projetos que buscam regulamentar o ensino doméstico, ou homeschooling, preocupam os especialistas da área.

Um deles recebe amplo apoio da base do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e tramita em regime de urgência no Congresso. Com ele, os pais poderiam se encarregar da educação formal dos filhos, sem mandá-los para as instituições básicas de ensino.


Assista ao seminário:


No legislativo também circulam outras propostas que provocam preocupação, como o projeto de lei 5435, que cria o Estatuto da Gestante.

De autoria do senador cearense Eduardo Girão (Podemos), o PL foi apelidado por movimentos sociais de “bolsa-estupro”. Isso porque prevê que, no caso de gravidez decorrente de estupro, o Estado deve pagar um salário mínimo até que a criança faça 18 anos. Também dispõe sobre a proteção do direito à “vida desde a concepção”.

“Isso é uma tentativa de inviabilizar o direito ao abortamento legal”, afirma o obstetra Olímpio Moraes Filho.

Ele acrescenta que, na contramão do que vem sendo proposto no universo político, há muito a se fazer para ampliar o conhecimento sobre os direitos das mulheres e crianças, inclusive entre os profissionais de saúde. A ausência de disciplinas sobre aborto nos currículos de medicina aprofunda o problema.

“Os profissionais de saúde saem desse mesmo caldeirão de cultura machista e misógina, e normalmente essas questões não são tocadas nos cursos de medicina.”

Na Universidade de Pernambuco (UPE), onde leciona, uma reforma curricular em 2004 incluiu os direitos sexuais e reprodutivos na grade dos estudantes. Nas tardes de segunda-feira, alunos do 6º período têm a oportunidade de debater e aprender sobre o direito ao aborto legal no país e todos os problemas a ele atrelados, incluindo a exploração sexual de crianças e adolescentes.

Durante o seminário, foi lançado um minidocumentário sobre abuso e exploração sexual na infância. O material foi idealizado pelo apresentador Luciano Huck e produzido pela Maria Farinha Filmes, com apoio do Instituto Liberta. É possível assisti-lo no perfil do apresentador no Instagram.

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