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Mesmo sem festa, tradição de São João persiste em cidades do Nordeste

Em cidades do recôncavo baiano, famílias acenderam fogueiras nas portas das casas e fizeram encontros com comida típica e regados a licor

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Recôncavo Baiano

Antônio Jorge saiu cedo de Salvador para ajudar nos preparativos no sítio da família, em Cachoeira. Romenil e seu filho Natan compraram fogos de artifício antes percorrer meia Bahia para chegar em Canavieiras, sul do estado.

Armando passou as últimas semanas cortando lenha e montando fogueiras para vender na beira da estrada, em Governador Mangabeira. Enquanto isso, em São Gonçalo dos Campos, Osvaldo colhia jenipapos nos fundos do sítio para produzir o próprio licor artesanal para brindar em homenagem ao santo.

Pelo segundo ano consecutivo, a pandemia da Covid-19 impediu a realização de festas nas praças das cidades do Nordeste para comemorar o São João. Mas não há vírus neste mundo que faça morrer uma tradição.

As fogueiras estavam nas portas das casas mesmo com a orientação das prefeituras para evitá-las. Bandeirolas enfeitavam as ruas, as mesas com as comidas típicas foram postas e até mesmo as guerras de espadas, perigosas disputas pirotécnicas, não deixaram de acontecer.

Osvaldo e Leandro Soares, pai e filho, festejam o São João em casa. Sem festas, tradição se mantém - Raphael Muller/Folhapress

Em Cruz das Almas, cidade do recôncavo baiano que faz uma das maiores festas de São João da Bahia, a pandemia forçou um reencontro com um estilo mais tradicional de comemorar o ciclo junino.

Fosse um ano normal, as ruas da cidade estariam lotadas –no período de São João, a população da cidade de 63 mil habitantes praticamente dobra. A maioria vem atraída pelas grandes festas –as públicas, nas praças, e as particulares, em fazendas– comandadas pelos principais artistas e bandas de forró do momento.

Neste ano, contudo, o movimento na praça principal era como o de um dia normal. Não fossem pelas fogueiras nas portas das casas e pelas placas de madeira instaladas nos portões para proteger as casas dos fogos de artifício.

Na rua da Estação, epicentro da festa, fogueiras se enfileiravam. Os decretos que proíbem aglomerações não arrefeceram os ânimos dos adeptos da guerra de espadas, disputa de pirotecnia que costuma ganhar as ruas da cidade durante o período junino, deixando uma legião de feridos com queimaduras.

A prática é oficialmente proibida desde 2011, mas nem mesmo a pandemia fez com que ela deixasse de acontecer em diversos bairros da cidade.

Um dos adeptos mostrava, na porta de casa, o rescaldo do dia anterior: marcas de pólvora nos muros e uma queimadura em sua perda direita. Com um copo de licor na mão, preparava-se para a nova disputa que aconteceria à noite, quando a polícia não estivesse por perto.

Em Cruz das Almas, o ciclo junino remonta a uma tradição de mais de 100 anos e começa do no dia 1º de junho, quando uma alvorada marca a chegada do mês mais aguardado do ano.

Sem as festas, a prefeitura incentivou que as comemorações ficassem restritas a dentro das casas. Montou uma rede de solidariedade para apoiar empresas e pessoas cuja renda depende do ciclo junino. Para manter a chama do forró acesa, definiu uma programação de lives com artistas locais.

Ainda assim, houve movimentação para a realização de festas clandestinas. Um bloco junino que aconteceria nesta quinta-feira (24) foi descoberto pela Polícia Civil, que apreendeu 142 camisas personalizadas da festa.

Em Cachoeira, cidade histórica nas margens do rio Paraguaçu, as pousadas e hospedarias estavam cheias mesmo sem uma programação de shows. Os visitantes vieram de outras cidades para reencontrar os familiares e comemorar o São João na zona rural da cidade.

O eletrotécnico Antônio Jorge Souza veio de Salvador. No início da tarde desta quarta (23), já estava no balcão do comerciante Roque Amorim, 64, degustando um licor de jenipapo fabricado no próprio local. Mais tarde, seguiria para a roça. Mas destacou que a comemoração seria restrita à família.

“Vamos acender uma fogueirinha, tomar um licorzinho, comer um amendoim cozido, assar um milho na fogueira. E ficar batendo papo, relembrando de meu pai, dos tempos passados. São João é uma festa família”, afirma Souza.

A tradição do reencontro fez com que o comércio de produtos típicos se mantivesse intacto. Na fábrica de licor artesanal Roque Pinto, em Cachoeira, as vendas até cresceram em relação a anos anteriores: foram cerca de 100 mil litros de licor produzidos apenas para o período junino.

Na véspera do São João, clientes faziam fila no balcão da fábrica para comprar licores de mais de uma dezena de sabores que vão dos tradicionais de jenipapo e passas aos mais elaborados de chocolate, açaí e pimenta.

“O pessoal continua comprando e degustando licor, por incrível que pareça. Nossas vendas foram maiores na pandemia. Parece que o pessoal, em casa, está bebendo mais”, afirma Rosival Pinto, proprietário da fábrica familiar que existe há mais de 100 anos.

Em cidades como Cruz das Almas e Governador Mangabeira, os barracões de fogos de artifício também tinham filas de clientes para comprar desde as inocentes chuvinhas e traques de massa até as girândolas de 156 tiros.

Na estrada entre Salvador e Canavieiras, Romenil Pinto, 52, e o seu filho Natal, 7, fizeram uma parada para comprar os fogos de artifício. “Estamos indo para a roça encontrar a família”, afirma.

A movimentação rumo ao interior e os reencontros familiares são um dos principais alvos de preocupação do governo baiano, que no ano passado registrou uma explosão de novos casos da Covid-19 em pequenas cidades após o ciclo junino.

Para evitar uma movimentação nas estradas, o governo suspendeu temporariamente o transporte intermunicipal de passageiros nos ônibus, deixando as estações rodoviárias vazias. Mesmo assim, as estradas estavam cheias de carros. Durante toda a quarta-feira, véspera de São João, foi intenso o movimento na BR-324, principal saída de Salvador para as cidades do interior.

O governo da Bahia estima que 1,5 milhão de pessoas deixaram de viajar para municípios do interior baiano no período dos festejos juninos esse ano. Ainda assim, nas pequenas cidades, famílias e prefeituras trabalharam para manter a tradição acesa, não raro gerando conflitos.

Em São Gonçalo dos Campos (115 km de Salvador), a prefeitura preparou uma programação de forró itinerante: um típico trio nordestino com sanfona, triângulo e zabumba percorreria as ruas da cidade em cima de um carro de som, com a orientação de que as pessoas permanecessem em suas casas.

Por volta das 17h, quando os músicos já se preparavam para começar o forró, dois carros da Polícia Militar fecharam a passagem e impediram que o carro de som saísse. Houve entrevero entre o comandante da guarnição da PM e o prefeito da cidade, Tarcísio Pedreira (SD), que chegou a ser detido pelos policiais e levado para delegacia.

Enquanto o trio nordestino não saía, o aposentado Osvaldo Soares, 66, não tinha a menor intensão de sair de casa. Terminava de acender a fogueira junto com o filho Leandro, 15, e já bebia o licor de jenipapo que ele mesmo produziu em seu sítio.

“São João para mim é isso aqui, é encontrar os amigos. É entrar em uma casa, perguntar ‘São João passou por aí?’ e beber um licor. Não é festa grande nem trio elétrico na rua”, diz.

Na cozinha, espigas de milho cozinhavam em uma panela sob o fogão, enquanto as caixas de som tocavam um antigo forró de Flávio José. Com as mãos escandidas para a fogueira, Osvaldo bebeu mais um gole de licor e arrematou: “É o que eu sempre digo, a vida é uma grande brincadeira. Posso não ter nada, mas tenho tudo nessa vida”.

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