Descrição de chapéu Afrofuturismo já

Autoestima da criança negra exige esforço extra da família

Signo de resistência e beleza desde os anos 1960, cabelo crespo ainda surge como trauma em consultas pediátricas

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São Paulo, Campinas e São Bernardo do Campo

“Eu sou muito linda.” Dafne, 10, elege os cachos como sua parte mais bonita. Mas nem sempre foi assim. “Já falaram que meu cabelo era ruim, que parecia um ninho.”

Aconteceu há um ano, na praia, em Arraial d’Ajuda (BA), conta a mãe, a recepcionista Fernanda Brito, 28: “A Dafne percebeu uma família olhando para ela. Tentei me afastar, mas ela ouviu o pessoal dizendo: ‘Como deixam o cabelo da criança desse jeito? Não penteiam, não lavam?’. Ela chorou muito, quis alisar o cabelo”.

Naquele dia, a mãe explicou à filha o que é racismo. “Nem sempre vou estar perto, preciso ensiná-la a se defender.”

A médica Larissa Rodrigues Jatobá afirma que é importante falar sobre o racismo ainda na infância e dar nome aos traumas. Especialista em medicina de família pela Fundação Oswaldo Cruz, Jatobá estuda lacunas na autoestima das crianças negras na atenção primária à saúde.

Modelo infantil Catarina, 6, e a mãe Milena de Castro Pereira
Modelo infantil Catarina, 6, e a mãe Milena de Castro Pereira - William Barros

Para a médica, oferecer à criança vivências positivas, com músicas e brincadeiras, pode ser mais efetivo que uma conversa longa sobre preconceito.

Em Paço do Lumiar, na região metropolitana de São Luís (MA), Manuela, 8, exibe uma boneca de pele clara e cabelo liso, em conversa por vídeo. “É igualzinha a mim, mas não tem cabelo cacheado. Se quiser, é só fazer assim”, diz, demonstrando a técnica “dedoliss”, que consiste em enrolar uma mecha no próprio dedo.

Manu acha outra diferença entre ela e a boneca, mas antes se certifica com a mãe, a designer Tayná Castro, 25: “Como é mesmo o nome?”, pergunta, referindo-se ao tom de pele.

O brinquedo ideal, diz ela, seria uma boneca-fada. “Tipo eu, só um pouquinho diferente. Teria cabelo cacheado, a mesma pele, mas não as roupas que uso. Teria asa, coroa, vestido de fada com renda.”

O imaginário é parte central da construção da identidade, lembra a psicóloga paulistana Lhayla Thalyta Basilio, que atua com oficinas de turbante para meninos e meninas, além de atender no Canto Baobá, espaço especializado em saúde mental, com ênfase em questões raciais e de gênero.

Ela diz que a maneira como os pais apontam as características físicas e subjetivas dos filhos e os brinquedos e livros que apresentam contribuem para a construção da autoestima infantil.

​Manu afirma que, se pudesse, mudaria os fios. “Não gosto quando tem que pentear. Não dá para ‘desenlinhar’ [desembaraçar]. É difícil, dói. Queria o cabelo igual ao da mamãe. Ela parece uma modelo.” Tayná tem cabelo liso.

Fernanda, mãe de Dafne —que foi importunada na praia— e também de Zeus, 2, diz que demorou a se aceitar como mulher negra. Filha de brancos, seu tom de pele era uma questão dentro de casa. Foi considerada branca pela parte preta da família, e “preta demais” pelo lado branco.

​Fernanda tenta introduzir livros, brinquedos e filmes que abordam a negritude na rotina dos filhos. “Fiz a transição capilar para incentivar a Dafne a se aceitar. Eu alisava o cabelo desde a infância.”

“Existe um esforço que a família negra precisa fazer e que uma família branca nunca vai precisar”, diz Rosane de Souza, pediatra há 29 anos e integrante do Negrex, coletivo de estudantes e profissionais negros da saúde.

Esse esforço é necessário porque a criança negra será exposta a padrões que carregam associações negativas de seus traços, como cabelo, cor da pele, boca e nariz. Isso pode levar à negação de si e à aversão a características de pessoas semelhantes, o chamado “auto-ódio”.

Questões sobre o cabelo crespo são frequentes em consultas pediátricas. Segundo Jatobá, é cruel perceber que as dúvidas surgem de experiências com o racismo. Situações traumáticas na escola, problemas com produtos químicos e até a crença de que o cabelo crespo é sujo e pega mais piolho levam os pais ao consultório.

A alopecia por tração também é recorrente entre meninas negras. Alopecia é a queda de cabelo, nesse caso provocada pelo estiramento excessivo. Rosane de Souza diz que, às vezes, os fios são trançados com força para que o penteado dure, ou não fique com aspecto de “mal cuidado” —ainda atribuído a cabelos crespos. Isso prejudica a irrigação do couro cabeludo.

Essenciais à autoestima infantil são as experiências em casa, na vizinhança, em ambientes acolhedores com pessoas negras. Jatobá chama a atenção para o fato de que esses momentos acontecem espontaneamente. “Quando a criança está ali dançando, vivendo algo positivo em casa, ela não sabe que aquilo também é parte da cultura negra.”

Catarina, 6, é modelo infantil em Fortaleza (CE). Sua característica preferida é a cor de sua pele. “Ela já nasceu com autoestima. Não ensinei, ela sabe que é linda”, diz Milena de Castro Santos, 44, também mãe de William, 21.

Milena afirma que a maternidade trouxe um novo olhar para sua negritude. “Aprendi com meu filho que precisava me posicionar como mãe, entrar em defesa dele quando necessário. Mas aprendi com a Catarina a autovalorização. Ela me ensina todo dia.”

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