Biblioteca é despejada de cemitério, e moradores viram guardiões de livros

Obras darão espaço a novas covas em Parelheiros; comunidade ficará com elas até que nova área seja encontrada

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Mariana Lima
São Paulo | Agência Mural

Depois de 12 anos reunindo um acervo com mais de 5.000 livros, a BCCL (Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura), em Parelheiros, no extremo sul de São Paulo, terá de deixar a atual sede: a casa do sepultador que fica atrás da capela do Cemitério Colônia, localizado no bairro de mesmo nome.

O projeto começou modesto e trouxe o convite para a população ressignificar as percepções sobre vida e morte por meio dos livros. Desde 2009, foram realizadas diversas atividades culturais, como o Sarau do Terror, o Sarau das Mulheres e o projeto Sementes de Leitura.

Todo esse trabalho foi feito com o apoio do Ibeac (Instituto Brasileiro de Estudo e Apoio Comunitário), organização que atua no território de Parelheiros.

Em destaque, um homem está sentado em um carrinho de mão e segura um livro. Ao fundo, há uma obra com muita terra e outra pessoa segurando outro carrinho de mão.
Rafael Simões, gestor da biblioteca, técnico em biblioteconomia e morador do bairro, ao fundo da sede da biblioteca - Karime Xavier -15.out.21/Folhapress

Porém, em fevereiro de 2021, a gestão da biblioteca recebeu uma carta-intimação extrajudicial da diretoria da Acempro (Associação Cemitério dos Protestantes), que administra o cemitério privado Colônia —o mais antigo da capital paulista. O documento informava que a casa do sepultador deveria ser desocupada devido à construção de novos túmulos no local.

O espaço havia sido cedido para a biblioteca por meio de um contrato seguindo a política de comodato, espécie de empréstimo gratuito em que o usuário precisa devolver o local após determinado tempo. Até então, o contrato vinha sendo renovado.

“Foi bem difícil de entender [a decisão de retirar o acervo do local] porque a gente está no meio de uma pandemia”, afirma Rafael Simões, 28, gestor da biblioteca, técnico em biblioteconomia e morador do bairro.

“Quando a carta chegou era para a gente desocupar o espaço em um mês. Era impossível mover um acervo tão grande em tão pouco tempo. A gente tentou mobilizar todo mundo, todos os parceiros e pessoas que poderiam nos ajudar naquele momento”, relembra.

Após conseguirem negociar, a biblioteca ganhou um prazo maior e deve deixar a casa do sepultador até 31 de dezembro deste ano. Rafael lembra que sempre foi difícil atrair as pessoas para o espaço devido ao medo de entrar no cemitério, apesar do acesso à biblioteca estar distante dos túmulos.

“Agora, como os túmulos estarão de fato na porta biblioteca, as pessoas teriam que literalmente entrar no cemitério para chegar até aqui”, diz Rafael.

Desta forma, a gestão da biblioteca tinha um desafio: como manter o acervo vivo, circulando pela região, enquanto se estabelece a nova sede?

Inspirados em uma lei colombiana que determina a distribuição do acervo de bibliotecas públicas fechadas ou em reforma para bibliotecas populares, a equipe da Caminhos da Leitura resolveu chamar moradores do próprio bairro, parceiros e amigos para cuidar do acervo.

A campanha “Eu (a)guardo a Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura” pretende distribuir sacolas, especialmente confeccionadas, com 10 livros cada, entre as pessoas que quiserem ser guardiãs do acervo.

Por meio da mobilização, a equipe espera fortalecer a relação da comunidade com a biblioteca. “As pessoas daqui ainda têm muito esse olhar de que o livro é algo sagrado e que a gente só encontra na livraria e que ainda vai custar o olho da cara”, pontua Rafael.

Ele conta que algumas pessoas ficaram surpresas ao saber que as obras estavam sendo emprestadas sem custo. “A gente espera que elas passem a entender esse acervo como um bem delas.”

Para colaborar com esse propósito, os guardiões podem emprestar as obras em suas sacolas para vizinhos, conhecidos e amigos da comunidade e de fora dela, além de trocarem com outras pessoas que receberam as sacolas.

Rafael reconhece os desafios da logística e sabe que nem todos os livros podem retornar no final do processo.

“Desde que começamos a atuar, ainda na UBS (Unidade Básica de Saúde) do Colônia, foram quase 12 anos em que muitos livros nunca foram devolvidos. A gente pede encarecidamente que devolvam para que outras pessoas também possam ler, mas não temos essa que se não devolver vai ser processado ou pagar multa”, diz.

Todos os que se tornarem guardiões do acervo estarão cadastrados na rede da biblioteca junto com a listagem dos livros que levaram em suas sacolas. Quando a nova sede for inaugurada eles serão chamados para retornar com os livros.

Nem todo o acervo foi disponibilizado para a campanha. Algumas obras, consideradas como de referência, de conteúdo adulto ou que foram autografadas pelos escritores, ficarão guardadas em um depósito na região junto com os móveis da biblioteca até a inauguração do novo espaço.

Guardiões do território

Uma das pessoas que já aceitou o papel de ser guardiã deste acervo foi a pedagoga e educadora Rafaela Nunes, 23, moradora do bairro Nova América, em Parelheiros. Quando soube que o local iria ser fechado, ela só conseguia pensar que outros jovens não teriam mais acesso a um espaço que fez tanta diferença em sua vida.

“Quando veio a ideia da campanha me deu uma esperança de que a biblioteca vai retornar e eu não podia deixar de fazer parte”, conta. “Quero compartilhar essas leituras com pessoas próximas, crianças vizinhas e para minha própria família também.”.

Antes da Caminhos da Leitura, o contato mais próximo que Rafaela tinha com os livros, fora do ambiente escolar, era em uma biblioteca dentro de um ateliê de costura em seu bairro, que foi fechada. Quando conheceu a BCCL durante um curso de mediação de leitura, ainda no ensino médio, encantou-se novamente pela leitura.

“Me cativou ter no acervo livros de pessoas assim como eu, pessoas negras, mulheres, poetas. Além disso, muitas vezes a gente conhecia esses autores, nos saraus que a biblioteca realizava”, destaca.

Enquanto guarda e aguarda a nova sede da biblioteca, Rafaela já tem em mente o que não pode faltar no local, como espaços de roda, escuta e compartilhamento de experiências. Tudo com foco nas relações a serem construídas entre os frequentadores.

Apesar das despedidas, a Caminhos já segue de olho no futuro. A doação de um terreno para construção da nova sede na região está sendo acertada. O espaço maior permitirá o desenvolvimento de outros projetos pela gestão da biblioteca, além da construção de uma horta comunitária.

Parelheiros é conhecido por ser uma região de APA (Área de Proteção Ambiental), por isso todo o processo de construção da nova sede buscará seguir diretrizes biosustentáveis.

Enquanto o novo espaço não pode ser ocupado, Rafael guardará na memória todos os momentos que vivenciou na casa do sepultador, sendo o último com público em março de 2020. Foi quando ocorreu o Sarau das Mulheres, em homenagem à escritora Carolina Maria de Jesus.

“Naquele momento não sabíamos que era o último evento no espaço. Olhando agora, foi bem significativo fechar o ciclo na biblioteca nesse local homenageando uma escritora que pertenceu a Parelheiros”, conta Rafael.

Para se tornar um guardião é necessário e aguardar o contato da gestão da Biblioteca Comunitária Caminhos da Leitura.

A Acempro, gestora do cemitério, disse em nota que cedeu de forma temporária o espaço para a biblioteca em 20 de janeiro de 2012. A cessão, segundo a associação, seria pelo período de dois anos e foi prorrogada, sem custos.

"Em fevereiro de 2021, em razão da ampliação do Cemitério de Colônia, já prevista desde a cessão temporária, foi solicitada a devolução do local, por meio de notificação escrita e no prazo estabelecido no contrato de comodato", escreveu a entidade, que afirma ainda ter cedido por mais nove meses a utilização do lugar pela biblioteca.

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