Descrição de chapéu Folhajus

Em julgamento da boate Kiss, advogado sobe o tom e juiz ameaça tirá-lo de sala

Discussão marca terceiro dia de audiência do caso em Porto Alegre

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Porto Alegre

"Doutor Jean, hoje não está legal, hein?", disse o juiz Orlando Faccini Neto ao advogado Jean Severo, que defende um dos réus no julgamento pelas mortes ocorridas na boate Kiss, após uma discussão durante o depoimento de uma testemunha nesta sexta-feira (3).

O terceiro dia de julgamento na capital gaúcha teve momentos de tensão. O caso foi desaforado de Santa Maria a Porto Alegre depois que defesas dos réus questionaram se a cidade onde ocorreu a tragédia, que deixou 242 mortos e outras 636 vítimas, poderia garantir um júri imparcial.

Quatro réus são acusados por homicídio e tentativa de homicídio simples por dolo eventual: os sócios-proprietários da boate, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos (vocalista) e Luciano Bonilha Leão (assistente de palco, que teria comprado o artefato pirotécnico utilizado).

Advogado Jean Severo (em pé), defensor do réu Luciano Bonilha, durante julgamento em Porto Alegre - Juliano Verardi/Imprensa TJRS

Neste terceiro dia, a primeira testemunha ouvida foi Daniel Rodrigues da Silva, dono da loja onde foi comprado o artefato pirotécnico usado pela banda. Ele afirmou que seu funcionário relatou que Luciano optou por artefatos mais baratos e sabia que os produtos eram para uso externo —o Ministério Público exibiu trecho de uma reportagem da TV Globo em que o funcionário afirmava o mesmo.

A defesa de Luciano discutiu com a testemunha, questionando se a loja já havia tido alguma situação com a Polícia Civil. Daniel perguntou no que aquilo era relevante e se era obrigado a responder à questão.

"Tu tem que responder, tu botou esse rapaz aqui. Ele colocou esse inocente aqui", gritou o advogado Jean Severo, repreendido em seguida pelo juiz.

Em outro momento, quando se discutia sobre a loja vender unidades soltas dos artefatos, sem as embalagens com instruções, Severo voltou a aumentar o tom: "É ilegal vender assim. A loja é ilegal, tudo é ilegal, devia estar sentado aqui [com réus]".

O juiz, então, ameaçou tirar o advogado da sala. "A próxima que o senhor me fizer, o senhor não vai ficar mais aqui. A bancada de defesa é muito grande. O senhor me respeite aqui", disse o juiz.

Durante a discussão, como mostra um vídeo publicado pelo jornal Diário de Santa Maria, Flávio Silva, presidente da AVTSM (Associação de Vítimas da Tragédia de Santa Maria), que perdeu a filha Andrielle na tragédia, aproximou-se do local onde fica o júri, falando algo, e a sessão foi interrompida. Ele precisou de atendimento médico, outros familiares deixaram a sala.

"Isso que aconteceu, infelizmente, de o seu Flávio se manifestar, isso pode causar nulidade do júri. A plateia não pode se manifestar, isso não pode ocorrer, os jurados não podem ser influenciados de maneira alguma. Pode, sim, nós pedirmos que ocorra o júri sem a presença dos familiares", disse a jornalistas a advogada Tatiana Borsa, que representa Marcelo.

Em um intervalo do julgamento, à tarde, Luciano negou a jornalistas que o funcionário da loja tenha o avisado de que o artefato só poderia ser usado em espaços externos ou falado sobre preços. "Só cheguei, a mando do Danilo [integrante da banda que morreu na tragédia], e comprei, peguei minhas coisas e fui tocar a minha vida", afirmou.

Extintores

A segunda oitiva do dia, com a testemunha Gianderson Machado da Silva, que revisava extintores de incêndio e atendeu a Kiss, começou com intervenção da bancada de defesa de Mauro Hoffmann, pedindo para contraditar a testemunha.

Os advogados afirmaram que a filha dele, uma jovem de 19 anos, havia publicado nas redes sociais, cerca de dez minutos antes, uma mensagem dizendo: "Meu pai é o próximo a depor no caso da Kiss, que ele fale tudo! Que esses donos da boate apodreçam na cadeia!!!". A conta foi apagada.

Após Gianderson confirmar o nome da filha, o juiz decidiu ouvi-lo, mas como informante, não mais como testemunha. Na prática, o depoimento dele passou a ter menos peso.

Gianderson afirmou que as recargas na boate foram feitas no prazo e que não é comum que um extintor revisado tenha falhas. Ele viu ainda um vídeo do início do incêndio, no qual pessoas aparecem no palco tentando controlar o fogo, e disse que o extintor poderia ter retardado as chamas, mas dificilmente conseguiria apagá-las totalmente.

Outras duas pessoas serão ouvidas ainda nesta sexta no julgamento, uma testemunha, Pedrinho Antônio Bortoluzzi, que já empregou Marcelo e falará sobre as qualidades dele, e uma vítima.

Desde o primeiro dia, o júri ouviu 3 testemunhas e 5 vítimas.

Ao todo, serão ouvidas no decorrer do julgamento 29 pessoas —12 vítimas, 16 testemunhas e um informante, além dos quatro réus.

A primeira testemunha foi ouvida nesta quinta, o engenheiro civil Miguel Pedroso, que assinou o projeto para tentar resolver o problema de poluição sonora da boate. Ele reafirmou que não indicou colocação de espuma, explicando que o material não serve para isolamento acústico.

O memorial descritivo do projeto assinado por ele, anexado ao TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) entre a Kiss e a Promotoria, não fala em espuma. Advogado de Spohr, um dos sócios da boate, Jader Marques confirmou a jornalistas que a Promotoria não foi informada sobre a colocação da espuma no palco, onde o fogo teve início.

"Ninguém sabia da capacidade de combustão e da emissão de gases tóxicos dessa espuma. A produção de prova no processo mostrou que não há como estabelecer relação entre o cianeto encontrado nos corpos com a espuma", disse o advogado, citando laudos que, segundo ele, confirmam a questão.

O promotor David Medina da Silva, que atua no julgamento, discorda.

"Nós temos laudos conclusivos de que o que matou as pessoas foi a espuma incandescente, colocada lá indevidamente, inadvertidamente, sem conhecimento de nenhuma autoridade", afirmou a jornalistas.

"O dolo eventual se liga ao fato de criar uma situação de extremo risco para a vida das pessoas. Então, quem colocou a espuma num ambiente fechado e permitiu o fogo ou colocou fogo num ambiente fechado, em condições impróprias, aí que reside o dolo eventual", disse o promotor.

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