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Tive que lidar com a culpa de ter sobrevivido, diz jovem que conseguiu sair da Kiss

Gabriel Barros criou coletivo para reunir sobreviventes da tragédia antes do julgamento

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Santa Maria

Gabriel Rovadoschi Barros, 27, já ouviu que não tinha cara de sobrevivente. Sem marcas de queimaduras ou sequelas visíveis, foi isso que alguém concluiu quando ele contou que foi uma das mais de 600 pessoas que conseguiram sair com vida da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, na madrugada de 27 de janeiro de 2013.

Desde aquele dia, além das lembranças e do trauma pelo que viu durante o incêndio, ele teve de conviver com sentimento de culpa por ter sobrevivido à tragédia que matou 242 pessoas.

Gabriel Rovadoschi Barros, 27, é uma das mais de 600 pessoas que sobreviveram ao incêndio da boate Kiss, em Santa Maria, no Rio Grande do Sul - Daniel Marenco/Folhapress

Antes do julgamento de quatro réus que respondem pelo caso —o júri começa nesta quarta (1º)—, ele decidiu criar um coletivo de sobreviventes para falar sobre os ecos da madrugada que mudou a vida de todos eles para sempre, o ExpreCidade. O nome é uma metáfora com o que ele vê como uma longa viagem e a história ferroviária marcante para Santa Maria.

Há um mês, ele também decidiu se mudar para um apartamento ao lado do prédio onde funcionava a boate. Pela memória da Kiss, pessoas evitam até hoje passar em frente ao local.

Durante muitos anos, fiquei afastado dos movimentos. No dia 27 de janeiro, saía da cidade, buscava viajar. Ano passado foi a primeira vez que me expus publicamente, em uma live, e agora criei o ExpreCidade.

Queria ter um lugar seguro para falar sobre algumas coisas. Somos cerca de 80 [pessoas].

É um espaço para compartilhar sentimentos, relatos, e, principalmente, para poder ficar quieto.

Eu tinha muito medo de ser reconhecido como sobrevivente. Esse nome me pesava muito.

Quando saí da boate e sentei no meio-fio em frente, aquela cena reconfigurou minha vida. Fiquei muitos anos pensando: por que saí? Tinha muita gente melhor que eu para sair. Eu me lembro de um vão que peguei, da oportunidade para sair, e eu peguei o lugar de alguém. Se estou falando hoje, é porque isso ainda me acompanha.

Só neste ano, talvez neste mês, que eu tenha aprendido um pouco que a culpa não é minha. Tem responsáveis por isso.

Já ouvi tanta coisa, já ouvi que não tinha cara de sobrevivente. Não tenho cicatriz, só a minha história.

A Kiss foi a primeira boate a que eu fui, eu tinha 18 anos. Era a segunda vez que eu ia a uma boate, segundo dia seguido e as duas noites foram na Kiss. Na noite anterior, fui com uns amigos e conheci uma menina da zootecnia, que teria festa lá no dia seguinte.

Eu estava em frente ao lugar onde ficavam DJs, do lado oposto do palco onde estava tendo o show. Dei umas voltas com meus amigos até parar ali. Dois deles sugeriram dar outra volta, eu falei que estava cansado. Eles foram e outros dois ficaram comigo e foi quando tudo começou.

A música parou, vi as cabeças se voltando para a região do palco, e escutava um burburinho, alguém falando "briga". Tentei andar para ver o que as pessoas estavam olhando. Tinha certeza que os guris tinham me acompanhado, e vi alguém fazendo sinal com a mão, para sair.

Se abriu um V entre as pessoas, porque elas estavam começando a se mover em direção à entrada/saída, e eu me meti no meio. Dei dois, três passos e travou. Ainda estava iluminado, e me lembro de ouvir gritos, do empurra-empurra.

Foi muito rápido.

Quando a fumaça chegou em mim, me ardeu os olhos, doeu o nariz. E, para mim, ainda era briga. Pensei: largaram um gás lacrimogêneo para dispersar. Pensei, então, que era incêndio e me lembrei dos programas de sobrevivência que gostava de ver na TV, mantive a cabeça baixa, coloquei a camisa cobrindo a boca e o nariz.

Fui me apoiando nas pessoas. Quando fui passar pela porta, a camisa caiu. Levantei a cabeça e não vi saída. Dei um passo a mais, olhei de novo e vi a luz de fora, pela fumaça. Não me lembro de ser empurrado, de empurrar, de ter que fazer força, só me joguei, parece.

Quando cheguei à saída, havia pessoas caídas e lembro que aquele momento demorou muito. Tive que escolher o que fazer e escolhi em quem iria pisar para sair, porque ou eu pisava, ou eu caía. Demorei um tempo escolhendo, vi um cara com as costas mais largas, para tentar não machucar tanto. Ele estava se mexendo, tentando sair também. Eu me lembro de pisar. Isso é mais uma coisa em que vem a culpa.

Consegui sair, peguei meu celular e liguei para a minha mãe. Sentei no meio-fio e começou a vir tudo, tentar entender o que estava acontecendo, me sentia enjoado.

Fiquei ajudando algumas pessoas a encontrar seus amigos e não achava os meus. Eu me lembro de ver gente caída, gente com sangue. Encontrei a menina da zootecnia, e ela estava machucada, com alguns amigos, todos desesperados. Eu falei: deixa que eu me responsabilizo por ela.

Liguei para a minha mãe e disse que a gente precisava levá-la a algum lugar.

Minha mãe pegou outro guri que estava com o braço sangrando e fomos para um pronto-atendimento. Quando a gente chegou, estavam tentando reanimar alguém. Vi um guri no chão, encostado, acho que já falecido. A sala de atendimento estava um caos, médicos chegando com roupa de festa.

Quando cheguei em casa, a primeira coisa que fiz foi entrar no Facebook e falar: "Pessoal, estou bem, mas eu tenho amigos de quem não tive notícia ainda. Por favor, quando souberem, me avisem".

Tomei um banho, me dopei e dormi. No rádio, já estavam falando de mais de 30 mortos. Quando acordei, não lembro se já estavam em 200, mas era absurdo. Fiquei sabendo que os meus amigos que eu tinha certeza de que estavam comigo estavam internados. Os outros dois, que foram dar uma volta, morreram.

Me entristece bastante ver que a cidade não está vivendo esse momento. As pessoas só lembram que tem julgamento se ligarem a TV. O desaforamento para Porto Alegre machuca todo mundo. Saber tudo o que causou dá muita raiva hoje. A gente foi emboscado.

Aquela pessoa que eu fui não volta, perdi muito de mim. Tive que me reencontrar e foi um longo trabalho.

Quero acompanhar pelo menos a primeira semana do julgamento. Vou indo conforme eu aguentar. Tem como se preparar, mas acho que não tem como estar preparado.

​Acho que vai definir não só o que passou, vai legitimar uma luta ou vai nos dar um golpe. Anseio muito por esse momento e tenho fé na Justiça. A nossa luta é também para que nunca mais ninguém precise passar por isso.

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