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Não quero ser uma exceção, diz jovem negra aprovada em medicina na UFRJ

Formada em escola pública e de família de baixa renda, Mayara Cardoso estudou para o vestibular durante quatro anos

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Rio de Janeiro

A única forma de alcançar o impossível é acreditar que é possível. Foram essas as palavras que Mayara Cardoso, 22, escreveu na parede de seu quarto quando começou a estudar para o vestibular de medicina.

Quatro anos depois, a jovem negra, formada em escola pública e de família de baixa renda conseguiu ser aprovada na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Embora a Lei de Cotas, aprovada em 2012, tenha ajudado significativamente a diminuir as disparidades raciais e sociais nas universidades federais, a proporção de estudantes negros em cursos mais concorridos, como medicina, ainda é menor do que nos demais.

Na modalidade de ação afirmativa à qual Mayara se candidatou, no campus de Macaé, havia apenas cinco vagas pelo Sisu (Sistema de Seleção Unificada). Ela ocupou a primeira, com uma nota de 770 no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio).

A estudante publicou nas redes sociais um vídeo do momento em que descobre, emocionada, que havia sido aprovada na UFRJ. A publicação rapidamente viralizou e sua história foi contada pelo site G1. "Foi uma mistura de sensações. Lembrei muito da minha avó e dos meus antepassados que não tiveram essas condições", diz ela.

Primeira de sua família a ingressar na universidade, Mayara quer inspirar outras pessoas pretas a concretizar seus objetivos. "Eu não quero ser uma exceção, quero que os meus estejam comigo. Não acredito nisso de meritocracia. Fui uma exceção, mas teve muita luta, muito trabalho, muito choro", afirma.

Mayara Cardoso, 22, aprovada no vestibular de medicina na UFRJ
Mayara Cardoso, 22, aprovada no vestibular de medicina na UFRJ - Arquivo pessoal

Moradora de Belo Horizonte (MG), Mayara entrou em um cursinho de baixo custo em 2018, quando uma pessoa próxima da família prometeu que pagaria as mensalidades. A partir do quarto mês, porém, os pagamentos pararam de ser efetuados. Ela descobriu a situação quando foi convidada a se retirar de sala em função da inadimplência.

"Eu liguei chorando para a minha mãe. Ela também chorou e prometeu que aquilo nunca mais aconteceria", diz. Ao longo do ano, a mãe chegou a atrasar o pagamento das contas da casa para custear os estudos da filha. Os avós também passaram a financiar o sonho de Mayara.

Um dia antes do Enem daquele ano, ela sofreu um novo baque: sua avó havia falecido. Doente, ela costumava ir ao hospital e contar a todos que sua neta um dia também seria médica. No funeral, Mayara deu um beijo na testa da avó e prometeu alcançar seu objetivo.

As expectativas e as muitas horas de estudo acabaram prejudicando a saúde mental da jovem, que começou a ter sintomas de depressão e ansiedade e precisou buscar acompanhamento psicológico em 2019.

Em 2021, já se sentindo melhor, Mayara diz que passou a ter orgulho da classe médica durante a pandemia. "Me senti tão orgulhosa que falei ‘quero ajudar, quero fazer a diferença também’", afirma.

Em novembro, ela prestou o Enem novamente e, dessa vez, conseguiu o resultado almejado. Durante os quatro anos de seguidas tentativas, Mayara foi aumentando sua nota gradativamente. Ainda assim, diz que considerou desistir em diversos momentos.

"Eu não vejo pessoas pretas, pobres, de escola pública, na faculdade de medicina. Sempre pensei: será que estou querendo demais para a minha vida?".

Entre 2001 e 2015, a porcentagem de negros entre estudantes de graduação (público e privado) saltou de 22% para 44%, segundo estudo da pesquisadora Tatiana Dias Silva, do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), "Ação afirmativa e população negra na educação superior".

No mesmo período, a população que se autodeclara negra subiu de 46% para 54%.

Segundo o Censo da Educação Superior 2020 do Inep, 37,6% das matrículas em cursos de graduação foram de pessoas negras, em comparação com 42,4% de brancos. Em 17,6% dos casos, não há informação ou não foi declarada a cor ou raça do estudante.

Na UFRJ, onde Mayara estudará, 46,5% dos estudantes sobre os quais há informação sobre cor ou raça são negros e 52% são brancos. No total da população brasileira, 42,7% se declararam como brancos, 56,2% como negros (soma de 46,8% de pardos com 9,4% de pretos) e 1,1% como amarelos ou indígenas, mostram dados da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios).

Pesquisador do Inep, Adriano Senkevics calculou a participação em instituições federais dos jovens pretos, pardos e indígenas, de 18 a 24 anos, com renda familiar inferior a 1,5 salário mínimo. Entre 2012, ano de aprovação da Lei de Cotas, e 2016, a porcentagem desse grupo nas instituições pesquisadas saltou de 34% para 42,7%.

Apesar disso, em 2017, 66% das pessoas com ensino superior completo eram brancas, em comparação com 32% de negros, segundo a Pnad.

Em cursos mais concorridos, as barreiras para a democratização do acesso tendem a ser maiores. Em sua pesquisa, Tatiana Dias identificou que os cursos de medicina e arquitetura apresentam a menor razão entre o percentual de negros ingressantes e a participação do grupo na população geral de cada estado.

Uma dos possíveis motivos é que o ingresso de negros fora do sistema de cotas seja menor para os cursos mais concorridos. "Uma coisa é falar de cursos mais fáceis de passar. Na medicina, em cursos altamente disputados, com notas muito altas, entra o mínimo que tem que entrar pela lei. Vão ser só essas vagas preenchidas, não vai ter um excedente muito grande", diz Senkevics.

Ele também lembra que cursos como o de medicina muitas vezes exigem custos adicionais e estudo em tempo integral.

As dificuldades de Mayara não se encerram com o ingresso na universidade –ela ainda precisará driblar a questão financeira para sustentar sua permanência. A jovem conta que terá cerca de R$ 650 por mês (metade da pensão que recebe do pai e divide com a irmã) para viver em Macaé.

Depois que ela publicou sua história nas redes sociais, internautas pediram seu Pix para ajudá-la. Mayara diz que, de um dia pro outro, recebeu mais de R$ 1.000. Foi com parte desse valor que comprou seu primeiro jaleco.

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