Camping para morador de rua não é política pública, dizem especialistas

Projeto anunciado por Soninha Francine prevê estrutura com banheiros e local para lavar roupa

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São Paulo

O projeto da Prefeitura de São Paulo de criar um camping para abrigar moradores de rua é visto com preocupação por especialistas.​

Em entrevista à Folha, publicada nesta segunda-feira (9), Soninha Francine, ex-vereadora e atual secretária de Direitos Humanos do município, disse que planeja destinar um terreno onde os moradores de rua possam montar suas barracas, tomar banho e lavar a roupa.

Barracas localizadas embaixo do Viaduto do Glicério, na região central de São Paulo
Barracas localizadas embaixo do Viaduto do Glicério, na região central de São Paulo - Zanone Fraissat/Folhapress

A proposta não é inédita, e a própria Soninha chegou a apresentar um projeto semelhante quando foi secretária do então prefeito João Doria (PSDB), mas ele não chegou a ser implementado na ocasião.

Apesar de reconhecer a importância de políticas emergenciais em um momento que o número de moradores de rua na cidade tem crescido, a maioria dos especialistas ouvidos pela reportagem afirmou que o custo do plano para o poder público é muito alto e não há garantias que ele vai de fato ajudar a população mais vulnerável.

Para Aluizio Marino, pesquisador do Lab Cidade (Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade) o projeto parece criar uma política para tirar pessoas de praças e enclausura-las em um gueto. "Não dá parra criar um depósito de pessoas em situação de rua", diz.

Marino considera que caso o plano seja colocado em prática, ele pode gerar um o efeito do que o planejado pela prefeitura. "Muitas pessoas podem optar ir para uma situação como essa, pode aumentar a demanda por essa população. É preciso de regulação do aluguel, está muito caro", diz. Ele pede ainda novos investimentos nos centros de acolhimentos, que estão em péssimos estado.

Um censo sobre o tema feito pelo município mostrou que houve aumento de 31% da população em situação de rua em 2021, na comparação com o levantamento anterior, de 2019. "Estamos em um momento drástico, mas só mudar de lugar as barracas, pode aumentar ainda mais essa população", diz Marino.

O padre Julio Lancelotti, da Pastoral do Povo de Rua, classifica o projeto como "um absurdo" e "uma proposta simplista e inadequada". "O povo não precisa da prefeitura para fazer camping. O correto seria continuar aumentando os leitos das redes hoteleiras ou moradias provisórias ou definitivas".

Ele diz ainda que a prefeitura precisa estabelecer uma prioridade para a área, em vez de mudar o foco a todo momento. "É um gueto de moradores de rua. Como cidade como São Paulo vai ter camping? É simplificar a questão num nível muito rasteiro", alega ele.

Apesar de apresentar a proposta, Soninha ainda não detalhou onde o camping seria instalado, qual o orçamento do projeto e nem quantas pessoas seriam atingidas.

Coordenadora-geral do Instituto Polis, Danielle Klintowitz afirma que a população em situação de rua precisa de um projeto definitivo. "Grande parte desta população já está em barracas. É só tirar dali e colocar em um camping. Claro, lá eles estarão mais protegidos, mas isso não é o suficiente, não se trata de uma política pública."

Klintowitz afirma ainda que o perfil da população de rua mudou nos últimos anos devido à crise. Com isso, muitas famílias que não tinham como pagar aluguel acabaram nessa situação —antes ela era formada majoritariamente por homens mais velhos com alguma situação de desintegração familiar.

"É fundamental que a gente tenha uma política permanente. Não adianta ter uma política transitória que faça ilusão de atendimento. Elas vão continuar passando frio, estando desassistidas às variações climáticas, condições precárias, em uma moradia improvisada."

Para ela, os locais em que os campings serão formados podem ser alvo de rejeição e preconceito do resto da população. "Já vemos isso com projetos da habitação popular, imagina em um acampamento?".

A diferença de perfil de sem-teto também chama a atenção do promotor Arthur Pinto Filho, da Promotoria de Direitos Humanos da Capital. "Fica claro que as ruas estão habitadas por famílias que não estão acostumadas a morar ali e que foram expulsas de suas casas por questões financeiras."

Ele analisa ainda que a miséria não é fruto do acaso, mas de uma política social que aprofunda a tragédia no Brasil. Para o promotor, o projeto carece de explicações, como o local onde os campings seriam distribuídos.

"Se for em um local afastado do centro de São Paulo as pessoas não vão para lá. As pessoas vivem no centro porque é onde elas conseguem papelão, esmola e é aqui que elas vão conseguir um trabalhinho ou outro [modo de ganhar a vida]"."

Um projeto eficaz, diz ele, seria criação de moradias sociais ou vagas em hotéis. "Nada disso vai funcionar se não houver uma política pública de trabalho e renda para os moradores de rua."

Na entrevista à Folha, Soninha classificou a situação atual como uma emergência e disse que o agravamento do número de pessoas na rua a faz acreditar que a criação dos camping possa sair do papel agora.

"A situação social atual da cidade fica mais configurada como emergência porque são 31 mil pessoas nas ruas, muitas famílias e gente recém-chegada que o principal motivo para estar na rua foi não ter conseguido pagar aluguel nem gás", disse ela.

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