Descrição de chapéu vale do javari

Após expedição, Bruno detalhou invasores em áreas de isolados e risco de retaliação a indígenas

Documento produzido por indigenista é de sua penúltima missão pela Funai e descreve 'penúria', 'total paralisação' de ações e invasões que anos depois levariam à sua morte

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Manaus

Num documento da Funai (Fundação Nacional do Índio), um de seus servidores da linha de frente anotou: "Uma profusão de versões e histórias se cria a partir das aldeias onde dizem estar aparecendo [indígenas] isolados no Vale do Javari."

Era Bruno da Cunha Araújo Pereira, agente em indigenismo, que havia acabado de voltar da Expedição Arrojo. Em oito páginas, ele reportou a um coordenador do órgão na região o que o grupo encontrou na missão que durou um mês inteiro.

Bruno Pereira e outros integrantes da Expedição Arrojo, em aldeia no rio Curuçá, na terra indígena Vale do Javari
Bruno Pereira (sem camisa) e outros integrantes da Expedição Arrojo, em aldeia no rio Curuçá, na terra indígena Vale do Javari - Reprodução

A expedição buscou elementos sobre o aparecimento de isolados em aldeias do baixo rio Curuçá, mais ao sul do Vale do Javari, a segunda maior terra indígena do Brasil –e onde mais existem indígenas isolados ou em recente contato no mundo.

"As histórias ganham novos contornos a cada volta do rio ou ‘câmbio’ no rádio", escreveu Bruno. "Uma certa comoção social se instaura e lembranças de guerras e raptos em tempos não tão distantes ganham vida novamente no cotidiano das relações do Vale do Javari."

O indigenista enumerou situações e histórias que ouviu dos indígenas, como "terçados e machados que somem misteriosamente, fumaça distante no firmamento, canto de aves que anunciam a chegada de forasteiro, doenças advindas de feitiçaria".

E concluiu: "Os fantasmas têm vida e sua existência sustenta esse mundo de coisas. É parte fundamental de uma expedição essa coleta de versões e a construção de diálogos para tentar abrir o pensamento hegemônico ocidental do Estado para as transformações na visão de mundo dos indígenas."

O documento assinado por Bruno, obtido pela Folha, reconstitui aquela que foi sua penúltima expedição pela Funai relacionada aos indígenas isolados no Vale do Javari, na tríplice fronteira do Brasil com Peru e Colômbia.

Para além do relato sobre a expedição, o indigenista denunciou no documento a presença de pescadores e caçadores ilegais na terra indígena. E apontou o risco de incidentes entre invasores e isolados, com eventuais retaliações dos isolados contra indígenas das aldeias.

Pouco mais de quatro anos após a elaboração do relatório, assinado em 21 de março de 2018, Bruno e o jornalista Dom Phillips foram assassinados na região do Vale do Javari, em 5 de junho. O crime foi cometido por pescadores que atuam de forma ilegal, segundo denúncia do MPF (Ministério Público Federal), num cenário de sensível piora dos conflitos e abandono da região pelo Estado.

O relatório elaborado por Bruno registra invasões de caçadores e pescadores perto de áreas de indígenas isolados; "penúria" contínua da Bape (Base de Proteção Etnoambiental) Curuçá, da Funai; e "total paralisação" de ações com Exército, Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) e PF, além de órgãos locais.

Bruno foi procurado pelo cacique de uma aldeia ainda no começo dos preparativos da expedição, como descreve no documento. Segundo Antônio Mayoruna, "os índios isolados continuavam aparecendo em sua aldeia, mesmo no inverno, e o clima de tensão tinha aumentado".

"A preocupação aumentava pois os matsés haviam flagrado caçadores não indígenas saindo em três canoas enlonadas de dentro do igarapé Sacudido, próximo a sua aldeia e local de acesso à área de ocupação mais intensa do grupo isolado", descreve o documento. As primeiras evidências sobre esses indígenas foram registradas em 2015, conforme o relatório.

Quando aportou na Bape Curuçá, como mais cinco integrantes da expedição, Bruno constatou um "esfacelamento do trabalho" na unidade. "Roçadeira não existe mais, e a motosserra, computador e impressora não funcionam há tempo."

O indigenista conversou com diversos indígenas sobre a presença dos isolados. Segundo alguns relatos, eles estavam com lanças e pintados de urucum. A presença desses indígenas fez grupos cogitarem uma mudança da aldeia.

Os indígenas ouvidos disseram temer que isolados contraíssem gripe ou malária, e que eventuais mortes por essas doenças fossem interpretadas como "feitiço" da etnia matsé.

"O clima de medo se instaura e o dia a dia fica tenso, sobretudo para as mulheres e crianças", anotou Bruno.

O indigenista e os outros integrantes da expedição se organizaram, então, para uma caminhada de três dias, em busca de vestígios. Mas Bruno passou a apresentar sintomas de malária após 11 quilômetros de caminhada.

"Com os sintomas mais latentes, a equipe decide parar e montar acampamento. Não havia condições de avançar nessa situação e não era seguro também andar em área de isolados com pessoas com malária", registra o relatório assinado pelo indigenista.

A expedição, já no fim, acabou abortada. "À noite desaba um intenso e longo temporal que nos acompanha até o amanhecer."

A presença na aldeia e o diálogo com os matsés foram considerados proveitosos, por "fortalecer a confiança nessa relação". "Estávamos à disposição para auxiliar na construção das estratégias de convivência e proteção dos isolados que vivem próximos à aldeia."

No documento, Bruno fez cinco recomendações: imediata reativação de ações da Bape; retomada de ações com órgãos de segurança, com intermediação do MPF; estruturação de apoio para vigilância no igarapé Sacudido; apoio da Funai para eventual mudança de aldeia; e elaboração de um plano de contingência para situação de contato.

"Apenas ações de comando e controle não surtem o efeito almejado de reduzir a invasão da terra indígena e o trânsito de infratores pelo rio Curuçá", afirmou Bruno, que fez uma sugestão que pode ser vista como o embrião do serviço de vigilância indígena: manter as caçadas dos matsés na área como "forma de monitorar a movimentação de possíveis invasores e dos próprios isolados".

Cinco meses após a expedição, em julho de 2018, Bruno foi nomeado para o cargo de coordenador-geral de Índios Isolados e Recém-Contatados da Funai e se mudou para Brasília.

No primeiro ano do governo Jair Bolsonaro (PL), em setembro de 2019, Bruno foi exonerado do cargo. Ele, então, se licenciou da Funai e passou a atuar para a Univaja (União dos Povos Indígenas do Vale do Javari). Foi um dos principais responsáveis por estruturar um serviço de vigilância indígena, diante do abandono de ações de fiscalização pelo governo federal.

O indigenista seguiu com ações em defesa da terra indígena, com a produção de relatórios em que denunciou o agravamento das invasões por pescadores e caçadores.

Em 2021, Bruno foi o supervisor de um plano de proteção do Vale do Javari, a cargo da Univaja e da Funai.

O documento, comparado ao relatório da Expedição Arrojo, é uma prova da escalada dos conflitos e da violência. Descreve invasões no rio Curuçá por caçadores, pescadores e madeireiros; presença de uma antiga pista de pouso de narcotraficantes na cabeceira de um igarapé do rio; e danificação das placas da demarcação por invasores.

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