Descrição de chapéu Solidariedade

Doações despencam em meio ao aumento da fome, e ONGs diminuem número de marmitas

Organizações dizem que pessoas e empresas deixaram de doar depois do pico da pandemia

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Rio de Janeiro

Ellen Santana da Silva, 18, não come verduras e legumes há dois meses por falta de dinheiro. Desempregada e com uma filha de cinco meses, ela precisa trocar a carne bovina por salsicha e linguiça, mas já se viu sem nada para comer.

No começo da pandemia, doações de marmitas e cestas básicas ajudavam a amenizar o quadro de vulnerabilidade social. Com o passar do tempo, porém, as doações minguaram, enquanto a insegurança alimentar aumentou.

Mulher segura bebê; ao lado há uma geladeira que está praticamente vazia
Ellen Santana da Silva, 18, está desempregada e tem poucos mantimentos na geladeira - (Marlene Bergamo/Folhapress)

"A gente recebia bastante doação, mas agora caiu bastante e as coisas estão mais difíceis. Agora, a gente está se virando do jeito que pode, mas está piorando cada vez mais", diz ela, que mora com mais cinco pessoas em uma casa de três cômodos em Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo.

A renda de R$ 500 mensais da família por vezes é insuficiente para comprar itens básicos, como o gás de cozinha. Quando isso acontece, a alternativa é cozinhar na casa de uma vizinha.

O cotidiano de Maria Carvalho, 61, também piorou depois que o volume de doações diminuiu. "As coisas foram ficando mais difíceis e as doações foram diminuindo. Antes, eu conseguia pegar quatro marmitas. Hoje, são duas", diz ela, que mora com os dois netos.

Carvalho trabalhava como empregada doméstica, mas perdeu o emprego quando a pandemia começou, em 2020. "Antes tinha menos gente na fila, mas agora vem mais gente só que a comida diminuiu."

Tanto Ellen quanto Maria são atendidas pelo G10 Favelas, iniciativa que chegou a fazer 10 mil marmitas por dia no auge da pandemia, número que despencou para 600 depois que as doações diminuíram.

Pessoas aguardam entrega de marmitas
Moradores de Paraisópolis, favela na zona sul de São Paulo, aguardam entrega de marmitas no projeto G10 Favelas - (Marlene Bergamo/Folhapress)

Presidente do G10 Favelas, Gilson Rodrigues, 38, acredita que a queda tenha acontecido porque uma parcela da sociedade passou a encarar a insegurança alimentar como algo normal. Hoje, 33 milhões de brasileiros passam fome, número maior do que o registrado há 30 anos.

"As pessoas se acostumaram com a fome, com o desemprego e com o aumento das filas de marmita. Elas estão conformadas com uma realidade piorada. A gente vê reflexo disso em Paraisópolis, mas isso é retrato do Brasil inteiro."

Um levantamento da CUFA (Central Única das Favelas) confirmou que a queda das doações de fato não é algo isolado. Segundo a entidade, as doações caíram 80% em cinco mil favelas em relação a 2020.

Para Drika Martim, 37, diretora institucional do projeto Mulheres da CUFA, essa queda expressiva se deve ao empobrecimento da população. Ela diz que a iniciativa já atendeu pessoas que fizeram doações no começo da pandemia, mas que passaram a depender de ajuda para poder sobreviver.

Martim destaca ainda que o aumento da pobreza e a queda das doações agrava a vulnerabilidades das mulheres. Elas não apenas passam a ter dificuldades para se alimentar, mas também para manter a higiene íntima.

"Existem casos de mulheres que não têm como comprar um absorvente e precisam colocar entre as pernas roupa usada, jornal ou miolo de pão."

Além de comida e absorventes, ela diz que peças para enfrentar as baixas temperaturas são fundamentais, sobretudo durante ondas de frio como as registradas neste ano.

"As baixas temperaturas trazem desespero para essas famílias, que vivem em áreas vulneráveis, o que faz o ambiente ser mais úmido e frio. Elas dependem 100% das doações de roupas usadas", diz ela, acrescentando que o frio aumenta o risco de mortes e doenças respiratórios entre pessoas em vulnerabilidade social.

"Existe família que tem oito pessoas, mas a gente consegue atender só com um cobertor. Então, a queda de temperatura aumenta muito as nossas demandas."

A assistente social acrescenta que, além do aumento da pobreza, as doações caíram porque algumas empresas deixaram de fazer contribuições. "A doação de empresas sempre foi a mais volumosa. A gente entende que talvez essas empresas achem que não há uma demanda tão grande ou não têm fôlego [financeiro] para contribuir."

Diretor executivo da Ação da Cidadania, Rodrigo Afonso, 48, faz coro à avaliação de Martim e afirma que as empresas não mantiveram o volume de contribuições do começo da pandemia. Segundo ele, no ano passado, a doação de pessoas jurídicas representou quase 80% dos recursos da organização.

Com a queda das contribuições, a Ação da Cidadania arrecadou até julho deste ano R$ 10 milhões. No mesmo período do ano passado, esse valor chegava a cerca de R$ 60 milhões. "As empresas doam uma vez no ano e acham que é suficiente. Há algumas empresas que fazem doação recorrente, mas a maioria doa uma vez no ano ou a cada dois, três anos e pronto."

Ela diz que as empresas têm dificuldade em manter doação contínua para ações contra a fome, porque consideram que a solução vem de políticas públicas voltadas à saúde, educação e emprego. "A gente sabe que a solução vem daí. Mas, enquanto ela não chega, as pessoas ficam com fome e morrem", diz Afonso.

"A maior dificuldade de quem luta contra a fome é fazer a sociedade entender que, se as pessoas não comerem, elas não vão estudar, não vão procurar emprego e não vão ter saúde. O maior problema do Brasil hoje é a fome. Enquanto você não resolve isso, não resolve nenhum outro problema social."

A escassez de doações tem criado um dilema para algumas organizações. Elas se vêm obrigadas a escolher quem precisa mais dos mantimentos por estar em maior vulnerabilidade.

Foi isso o que aconteceu no projeto Quebrada Alimentada, iniciativa do restaurante Mocotó. No fim do ano passado, o projeto atendia cerca de 400 pessoas, número que caiu para 70 neste ano em razão da queda de doações.

"A gente está tendo que dizer não para muitas pessoas, que escolher grupos e diminuir as marmitas. É muito cruel e muito pesado ver isso, porque você sabe que a pessoa está precisando", diz a historiadora Adriana Salay, coordenadora do Quebrada Alimentada.

A iniciativa é um dos 154 projetos que integram a campanha "Gente é pra Brilhar, Não pra Morrer de Fome". Segundo Salay, outros coletivos que fazem parte da campanha também enfrentam queda nas doações.

"A gente está numa crise profunda de fome, mas as doações estão na contramão", diz ela. "Enquanto sociedade, a gente falhou por ter mais da metade da população em insegurança alimentar. Isso não é um problema de uma família, mas sim um problema de todos nós."

Outra iniciativa que viu as doações encolherem foi a Gastromotiva, organização fundada em 2006 pelo chef e empreendedor social David Hertz.

De acordo com Clarisse Ivo, gerente de captação de recursos da ONG, houve uma queda de 60% nas doações em relação ao ano passado, o que motivou o fechamento de 50 cozinhas em quatro estados. "Isso representa 750 mil refeições que deixaram de ser distribuídas por conta desse fechamento."

Apesar disso, ela ainda considera que o brasileiro seja solidário. "Quando você prova o que está fazendo e mostra os resultados, as pessoas têm muito prazer em fazer doação e em ser voluntário. É um trabalho de formiguinha: a gente começa a falar do projeto, a pessoa se encanta e começa a doar."


Saiba como doar:

Ação da Cidadania
Promove ações de saúde, educação, cultura e geração de renda por meio dos comitês estaduais, conforme a demanda de cada comunidade
Onde: Em todo o Brasil
Informações e doações no site: www.acaodacidadania.org.br

Amigos do Bem
Combate a miséria no sertão nordestino por meio de projetos de educação, geração de renda e acesso
Onde: AL, PE e CE
Informações no site: doar.amigosdobem.org/acaoemergencialpf

O Amor Agradece
Organização que nasceu da reunião de amigos para cozinhar e distribuir quentinhas para a população vulnerável de São Paulo. Também distribui cobertores no inverno
Onde: São Paulo
Informações no Instagram: @oamoragradece/

G10 Favelas
É um grupo de líderes e empreendedores sociais que atuam em favelas. O dinheiro arrecadado nas campanhas é usado na compra de marmitas e kits de higiene para moradores de comunidades
Onde: em 16 estados do país
Informações e doações no site: g10favelas.com.br

Gastromotiva
Atua no combate à insegurança alimentar e desperdício de alimentos formando gratuitamente cozinheiros e empreendedores, que produzem e distribuem refeições nutritivas nas suas comunidades a partir do programa de cozinhas solidárias
Onde: Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Manaus, Salvador, Dourados e Lucas do Rio Verde
Informações e doações: www.gastromotiva.org

Mães da Favela
Iniciativa criada pela Cufa com o objetivo de levar renda para mães moradoras de favelas
Onde: em todo o Brasil
Informações e doações no site: www.maesdafavela.com.br/doar

Pão do Povo da Rua
Projeto do Instituto de Pesquisa da Cozinha Brasileira (IPCB), que diariamente produz 3.000 pães e bolos destinados à distribuição para as pessoas em situação de rua, no centro de São Paulo
Site: paodopovodarua.com.br. Tel. (11) 99999-4090

Quebrada Alimentada
Organizam ações para servir marmitas e cestas básicas às famílias da periferia do bairro de Vila Medeiros, zona norte de São Paulo. Desde o começo da pandemia, foram mais de 100 mil refeições servidas e 70 mil kg de alimentos doados em cestas básicas
Onde: São Paulo
Informações e doações no site: solidariedade.gaiamais.org/

Redes da Maré
Produz projetos e ações para garantir qualidade de vida aos mais de 140 mil moradores das 16 favelas que compõem o Complexo da Maré, no Rio de Janeiro
Onde: Rio de Janeiro
Informações e doações no site: www.redesdamare.org.br/br/quemsomos/doeagora

Serviço Franciscano de Solidariedade (Sefras)
Oferece assistência social a crianças e adolescentes, pessoas com hanseníase, idosos, imigrantes e refugiados e pessoas em situação de rua
Onde: São Paulo e Rio de Janeiro
Central de Doações: (11) 3795-5220 / (21) 96927-9888
Site: sefras.org.br

Tem Gente com Fome
Arrecada recursos para ações emergenciais contra a fome, miséria e violência na pandemia
Onde: em todo o Brasil
Site: www.temgentecomfome.com.br

União Brasileiro-Israelita do Bem-Estar Social (Unibes)
Atende pessoas em situação de vulnerabilidade com assistência social e serviços para crianças, adolescentes, jovens e idosos
Onde: São Paulo
Site unibes.org.br/onde-estamos/. Tel. (11) 3311-7266 / (11) 3123-7300 / WhatsApp (11) 96929-4660 e (11) 99328-8398

Unidos do Bem
Distribui marmitas para população de rua e comunidades na periferia de São Paulo, em bairros como Heliópolis, Paraisópolis, Campo Limpo, Jardim Ângela, Grajaú e Capão Redondo
Site: unidosdobem.org.br. Tel. (11) 97093-1818

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