Helenita e Aytan: há meio século lutando pela democracia

O casal de médicos nordestinos foi preso pela ditadura e nunca parou de batalhar 'contra a barbárie'

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São Paulo

Helenita e Aytan se repararam em fevereiro de 1960, na primeira aula de anatomia, no primeiro ano do curso de medicina da Universidade Federal do Ceará. Demoraria para se conhecerem também anatomicamente. "Tínhamos namoros paralelos e nos tornamos os melhores amigos desde aquele dia. Inseparáveis!", contam num depoimento que fazem questão de assinar juntos. Inseparáveis.

Por três anos, foi aquela coisa: uma amizade entre os bancos da faculdade. A piauense Helenita até ficou amiga da namorada do cearense com quem "batia grandes papos à noite na porta do pensionato onde eu morava". A grande ficha, em algum momento, ela iria cair: "Até que nos percebemos apaixonados para sempre. Desfizemos com muita delicadeza os namoros paralelos, e estamos juntos há 58 anos".

Naquele dia 1 da faculdade, Aytan usava uma tarja preta de luto no braço. A mãe havia morrido um mês antes. Certa marcha fúnebre voltaria anos depois à vida do agora casal de médicos. Começava a ditadura militar.

Aytan e Helenita Sipahi se conheceram na luta contra a ditadura e estão juntos até hoje - Arquivo Pessoal

Já no começo do golpe, em 1964, Aytan se escondeu com outros companheiros num sítio. Havia sido eleito para diretoria da União Nacional dos Estudantes, a UNE, dos dois anos anteriores.

Em 1965, o Exército chegou a prendê-lo no campus, junto com outros dirigentes estudantis. "Helenita, com a imprudência da juventude, foi à casa do comandante exigir sua libertação. Deu certo. Ele saiu no dia seguinte", rememoram 57 anos depois.

O episódio também foi lembrado no depoimento que eles deram à Comissão Nacional da Verdade, em 2013. Helenita recordou que interrompeu um jantar de família do tal coronel para lhe falar umas poucas e boas: "Eu sou noiva, vocês estão prendendo arbitrariamente um estudante de medicina que não tem nenhuma culpa formalizada, e vocês são responsáveis por tudo o que acontecer com ele, o senhor pessoalmente é responsável".

Nos primeiros anos da ditadura, levavam uma vida legal como estudantes e uma atuação clandestina em movimentos de resistência, na Juventude Universitária Católica e no Partidão, o Partido Comunista Brasileiro.

Com diploma na mão, mudaram-se para São Paulo, atrás de uma pós-graduação na USP, um ano antes do AI-5. Na cidade viraram habitués do Spazio Pirandello, bar na rua Augusta enxameado de artistas e intelectuais. "A gente se reunia com lideranças estudantis, de movimentos sociais, ex-presos políticos, jornalistas e parlamentares, todos na resistência. Ali surgiu o amarelo das Diretas Já lançado pelo genial Antonio Maschio, criador do Pirandello", contam sobre a cor escolhida para a campanha publicitária que embalou o movimento pela redemocratização do país.

Já tinham dois filhos, Guilherme e Fabiano, quando a equipe do delegado Sérgio Fleury os prendeu em casa, na noite de 16 de janeiro de 1970. Entraram uns dez agentes de uma vez, já tudo de metralhadora.

A participação do sr. e da sra. Sipahi na luta contra o regime foi registrada em 2014 por uma revista do Sindicato dos Médicos de São Paulo, produzida para relembrar os 30 anos das Diretas Já.

"Além de torturados, ambos foram presos", resgata o texto. "Ela, dois meses no Dops, e ele, dois anos no presídio Tiradentes, onde hoje fica um museu em São Paulo. O crime: opinião."

Helenita conta que o trabalho deles era intelectual, de militância política. Um casal de primos médicos, que estava com eles no momento da prisão, ficou com a guarda das crianças. O caçula tinha oito meses e uma doença hemolítica. Foi trazido depois para o Hospital das Clínicas, onde ficou internado até a mãe sair em liberdade condicional.

Aytan só deixou o cárcere em janeiro de 1972. Passou por pau de arara, cadeira do dragão (com eletrocutações), "essas coisas todas, toda a parafernália", como narrou à Comissão da Verdade. Seus torturadores queriam que dissesse "onde é que estava o dinheiro e as armas". Mas o casal não sabia de nada disso.

Até que reconquistasse a liberdade, Helenita o visitava toda semana, com os filhos. "Era uma ‘festa’ de solidariedade e esperança. Além do pranto pelos nossos mortos. Grandes amizades, que mantemos até hoje, começaram ali."

Isabel, a terceira filha, chegou em 1973. Criaram um trio de "defensores ferrenhos da igualdade, dos direitos humanos e da democracia", orgulham-se.

Nos últimos 50 anos, Helenita e Aytan participaram de todos os movimentos políticos pela democracia. Hoje ela está com 81 anos, e ele, 83. Irão juntos votar neste domingo (30). Não pretendem parar agora o que definem como uma batalha "pela civilização contra a barbárie". Inseparáveis.

Aytan e Helenita Sipahi se conheceram na luta contra a ditadura e estão juntos até hoje; na foto, eles com os filhos. - Arquivo Pessoal
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